Na ocasião do aniversário de 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em um contexto tenebroso em que muitos desprezam seus preceitos, somos levados a reavaliar a importância do manifesto O direito à literatura, do crítico literário e pesquisador Antonio Candido, que em um de seus trechos mais célebres enquadra a literatura como:
“uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza. (…) a literatura pode ser um instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de restrição dos direitos, ou da negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação espiritual”.
O que nos leva à pergunta: o que é possível fazer para diminuir o abismo da desigualdade de acesso à literatura e de que maneira a produção jornalística pode contribuir para demarcar o papel da leitura enquanto mecanismo de mudança social? Para tanto selecionamos uma reportagem do portal Vós, parte de um projeto multiplataforma, que tem como proposta contar histórias inspiradoras sobre o cotidiano de Fortaleza a partir da ótica de seus habitantes, apresentando os lugares e personagens que dão vida à cidade. Publicada em outubro de 2018, a matéria Abrir o baú e compartilhar leituras, de Marcela Benevides, com imagens de Igor de Melo, nos convida a passear pela capital cearense conhecendo pessoas empenhadas em difundir a paixão pela leitura em diferentes contextos.
O parágrafo inicial traça um interessante paralelo entre a cultura de compartilhamento, tão comum na esfera dos produtos digitais, com o tema que permeia toda a reportagem: o ato de compartilhar livros. As três iniciativas retratadas no texto apontam estratégias para dividir leituras, seja através de trocas ou da criação de locais de convivência alternativos, onde a população tenha acesso a uma maior variedade de obras.
Os exemplos também suscitam o debate sobre modelos de consumo literários distintos: a compra e posse individual do objeto livro, um privilégio de poucos, versus a fruição das histórias contidas neles, aliada à instigante possibilidade de partilhá-las com um número maior de pessoas.
Em meio às constantes discussões sobre a crise do mercado editorial que vemos na grande mídia, sem dúvidas relevantes, mas por vezes repetitivas e economicistas, aqui o foco na produção e comercialização de literatura no Brasil abre espaço para um debate mais amplo sobre modalidades de consumo compartilhado, que desafiam o leitor a questionar o que nós enquanto sociedade entendemos como “valor” de um livro. Ao longo da reportagem o que observamos é um deslocando das relações que estabelecemos com esses bens de consumo para o potencial dos laços sociais que a experiência da literatura é capaz de proporcionar.
Na fala de Annita Moura, idealizadora do projeto Livro Livre Ceará, a ideia de que os livros são deixados pela cidade para que sejam “achados” pelos transeuntes é mostrada como forma de apropriação do espaço público enquanto lugar onde essas trocas acontecem. Estabelece-se aqui mais um contraponto: o livro em circulação e aquele preso à estante, como podemos constatar no trecho “dos anseios proporcionados pelo projeto, está o de aproximar livros e leitores e fazer com que a literatura ganhe espaço e chegue a quem mais precisa desse estímulo”.
Sobre o processo de criação de novos leitores os personagens comentam a influência das pessoas que ofereceram a eles no passado a oportunidade de entrar em contato com livros de forma livre e gratuita, evidenciando o poder transformador das ações que eles agora procuram replicar. Raphael Rodrigues, um dos voluntários da biblioteca comunitária Viva o Barroso, menciona a biblioteca da tia como seu primeiro contato com a literatura na infância. Já o espaço construído por ele e os demais voluntários proporciona que o mecânico de aviões Éber possa mergulhar no mundo da leitura. Esse ciclo de influências evidencia o impacto das iniciativas conduzidas pela sociedade civil, capazes de alterar a vida e a percepção de mundo dos moradores do bairro.
Cabe ressaltar que a linguagem e os exemplos explorados ao longo do texto buscam ao máximo enquadrar o ato de ler como fonte de prazer, lazer e diversão, afastando o imaginário do livro restrito somente ao ambiente escolar ou da leitura como atividade apreciada exclusivamente por uma elite intelectual. São citadas tanto histórias de suspense quanto obras de sociologia e as fotografias das estantes mostram livros de política e economia dividindo espaço com romances populares.
Ao mencionar os números de visitantes do Viva Barroso e a quantidade de livros “devorados” por seus visitadores mais assíduos, a matéria fornece pistas de que os leitores em potencial estão em todos os lugares. O caso dos personagens Edegarde e Eduardo exemplifica que muitos jovens da periferia não frequentavam as grandes livrarias nem conseguem visitar as bibliotecas mais afastadas da cidade por questões financeiras. Assim fica claro que a afirmação de que “o brasileiro não lê” não leva em conta os empecilhos para que o gosto pelos livros floresça em um cenário desigual de oportunidades.
Por fim, a reportagem apresenta um outro espaço de leitura, desta vez associado a um estabelecimento comercial na área mais nobre da cidade, que preza pela divulgação da literatura local. Recuperando a tradição e as raízes históricas do café, distribuindo folhetos e equipando o ambiente com livros sobre o Brasil que podem ser consultados pelo público, a cafeteria ainda faz uso de sua estrutura para projetar autores locais, abrindo o espaço para lançamentos de novos livros, que dificilmente grandes livrarias disponibilizam, e promovendo concursos literários.
Apesar de aparentemente deslocado dos dois exemplos anteriores, mais voltados para ações no campo do voluntariado, aqui vemos um caso de um empreendimento que busca chamar atenção e se diferenciar pela temática de valorização da cultura brasileira e o sentimento de pertencimento.
O valor de mostrar projetos assim é dar visibilidade às estratégias que fomentam a “sustentabilidade cultural” da literatura cearense, através de iniciativas que não só atraem público, mas também divulgam novos autores, funcionando como contrapartida social para o fortalecimento de um ecossistema literário e uma cena cultural mais rica e plural. Para ressaltar ainda mais a importância da iniciativa, é importante lembrar que em maio de 2018 foi sancionada a lei que fundamenta as bases de uma Política Nacional de Leitura e Escrita para promover a democratização da literatura e a criação de espaços de leitura públicos por todo o país, com a ideia de fortalecer o planejamento de incentivo às práticas de promoção do livro a nível federal, estadual e municipal.
Ainda que não cite diretamente a efetividade de políticas públicas sobre o assunto, a reportagem do portal Vós abraça e trás para o campo da comunicação os discursos e reflexões sobre o poder da leitura como motor de transformação íntima capaz de alterar a forma como encaramos a realidade. Ao divulgar ações de indivíduos que compreendem essas benesses e se organizam coletivamente para compartilhar a dádiva que é a prática da leitura a matéria incentiva o leitor a compreendê-la como atividade fundamental para o desenvolvimento humano.
Olga Lopes
O especial Abrir o baú e compartilhar leituras está disponível em:
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