Luís Adriano M. Costa
OMuseu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, recebeu recentemente a exposição “Nas asas da Panair”. Da mostra fizeram parte algumas relíquias, como uniformes da tripulação, louças, cinzeiros, peças gráficas dos roteiros nacionais e internacionais, maletas de mão, medalhas comemorativas e pequenos mimos luxuosos, tipo guardanapos de linho, protetor de caneta tinteiro e talheres de prata. Reunidos, esses objetos resgatavam ali, para os visitantes, parte da história da empresa brasileira de aviação mais bem sucedida do país, a Panair do Brasil S.A, que chegou a um final trágico graças às arbitrariedades praticadas pelo primeiro governo militar depois do golpe de 1964.
O motivo? A perseguição dos militares aos dois acionistas majoritários da Panair: Celso da Rocha Miranda e Mário Wallace Simonsen. O primeiro atuava no ramo de seguros, o maior da América do Sul. Mário Wallace Simonsen, por sua vez, era detentor da principal exportadora de Café no Brasil, proprietário da TV Excelsior e de inúmeras empresas. Um visionário empreendedor que sonhava voar alto, exportando o café brasileiro para o mundo. Ele queria estar à frente de todas as etapas dos processos. Chegar até a ponta do varejo, uma espécie de Starbucks já naquela época, talvez…
A Panair chegou a ser a segunda maior empresa aérea do mundo, com números expressivos na sua atuação, muito além da operação de linhas. De forma rápida, ao longo da sua existência, adquiriu um patrimônio imobiliário grandioso, com imóveis comprados a preço de banana na Europa pós-guerra, possibilitando que suas sedes nesses países ocupassem prédios inteiros. Possuía também terrenos onde foram construídos aeroportos, como os do Galeão, Recife, Salvador, Natal, Fortaleza, Belém, Maceió, São Luís e Macapá. Alguns desses aeroportos, inclusive, construídos pela própria Panair.
Naquele tempo, a companhia já detinha uma estrutura que é a base da aviação até hoje, com toda a rede de telecomunicações aeronáuticas do continente com capital próprio, que atendia qualquer avião militar ou civil que passasse pelo Atlântico Sul. Controlava ainda a mais extensa rede de estações meteorológicas. A Panair era dona da Celma, atual GE, e possuía a maior e mais avançada oficina de motores do Hemisfério Sul. Prestava seus serviços para empresas do ramo, nacionais, estrangeiras ou da própria FAB. Suas atividades também eram direcionadas a um aspecto social importante: integrar a Amazônia ao restante do país através dos hidroaviões, já que a malha rodoviária era insipiente e as viagens por embarcações chegavam a durar dias, por vezes, impraticáveis pelas baixas dos rios.
Foi assim até que no dia 10 de fevereiro de 1965. Sem a instauração de um processo administrativo regular, a empresa recebeu um despacho por telegrama assinado pelo presidente da república, marechal Castelo Branco, e pelo ministro da Aeronáutica, brigadeiro Eduardo Gomes, que suspendia todas as concessões de linhas aéreas da Panair. Na noite daquele mesmo dia, enquanto a sede da companhia era cercada por militares armados, proibindo a entrada ou saída de qualquer pessoa, no aeroporto do Galeão, a aeronave que faria um voo internacional para Frankfurt — Alemanha, já seria substituída por um avião da concorrente Varig, que naquele momento já estava com um Boeing pronto no pátio para fazer a viagem, mesmo sem nunca ter operado na Europa. A partir dali, misteriosamente, a Varig passava a operar as principais linhas da Panair. Tudo muito engenhosamente articulado e orquestrado junto a Varig, cujo proprietário, o empresário Ruben Berta, era um conhecido aliado do governo militar.
Aos poucos, no entanto, foi ficando evidenciada a verdadeira história, repleta de abusos e práticas corruptas pelos militares. Das ilegalidades praticadas constam apropriação de ativos da empresa, ameaça a juízes, laudos periciais falsificados, decretos baixados do dia para a noite com efeito retroativo para empresas de transporte aéreo, retirando da Panair todas as possibilidades de reverter a situação.
Somente em 1984, com a abertura política assegurando a independência da Justiça, o Supremo deu ganho de causa à companhia. Era tarde. Mário Simonsen faleceu em março de 1965, aos 56 anos de idade, vitimado por um ataque cardíaco fulminante, um mês após o despacho que decretava a falência da companhia, em 15 de fevereiro. Funcionários resistiram, fizeram campanha nas ruas, passaram por necessidades. Algo em torno de cinco mil pessoas trabalhavam na empresa. Paulo Sampaio, ex-presidente da Panair, registrou em seus escritos pelo menos 18 suicídios nesse período de pessoas ligadas à empresa. Mesmo sepultada, sem prestígio, com suas realizações esquecidas ou usurpadas, em 1995 a Panair conseguiu levantar falência e continua a luta por uma reparação moral.
A querela autoritária é longa e merece ser conhecida em detalhes. Um pouco mais sobre essa história pode ser conferida no documentário Panair do Brasil — Uma história de glamour e conspiração, de Marco Altberg; ou no livro Pouso Forçado: a história por trás da destruição da Panair do Brasil pelo Regime Militar, do jornalista Daniel Leb Sasaki, relançado em edição ampliada em 2015.
A tragédia da Panair também é contada na música Saudade dos aviões da Panair, de Fernando Brant e Milton Nascimento, que explodiu na voz de Elis Regina no álbum Elis (1974) com o título Conversando no bar. O nome da canção modificado inicialmente para evitar censura por parte do regime autoritário, recebeu posteriormente o título original no disco Minas (1975), de Milton Nascimento. Mais recentemente, no álbum Nem 1 ai, a cantora Mônica Salmaso fez mais uma bela releitura da canção. Entre outros registros, merecem destaque também a versão instrumental pelo músico Hamilton de Holanda, no DVD Casa de Bituca; além do musical Milton Nascimento — Nada será como antes, espetáculo de Charles Möeller e Claudio Botelho.
Nessa viagem pela Panair, uma conexão parece ser obrigatória. A crônica Leilão do ar, publicada em 2 de outubro de 1969, que marca a estreia de Carlos Drumond de Andrade no Jornal do Brasil. Drumond se fazia presente ao leilão. Não foi até a loja da Avenida Graça Aranha, no Rio de Janeiro, para arrematar nenhum objeto. Dou-lhe uma. Dou-lhe duas. Dou-lhe três. Dali, em meio ao caótico de um real acidente, com a aeronave no chão, num amontoado de coisas, tendo seus destroços varejados por curiosos, cujo destino provavelmente seria um possível hotel barato ou uma pequena casa burguesa, o poeta arrematou o sonho: com uma fórmula secreta não revelada, ele entra em uma das miniaturas de avião que também seria apregoada e que manifestava sinais de inquietação, rompe as paredes do edifício e segue dentro da aeronave “para onde os aviões se tornam estrelas inacabáveis, sem remorso dos homens”.
Daqui, enquanto escrevo, ouvindo Saudade dos aviões da Panair, me esforço em conseguir alcançar a façanha de um Drumond. Num susto imenso, vejo sem ver um avião da Panair levantar voo. Vejo o bonde no sobe e desce ladeira. O motorneiro que rege o que parece ser uma orquestra. Vejo o tiro que não foi dado. Vejo que as coisas mudam e que tudo é pequeno nas asas da Panair. E faço como diz o verso da música: “Descobri que minha arma é o que a memória guarda dos tempos da Panair”.
A história conta. A nós, cabe saber a verdade. Saber dessa mancha e da fala oculta que morreu no fundo de um quintal. E das muitas vozes silenciadas e aniquiladas pelo regime autoritário. Saber também das maravilhas, ali conversadas em uma mesa de bar. Lembrar o que já foi, mas que não se vai. E não deve ir, porque apenas assim seremos melhores do que fomos.
Lembrar da lição deixada pelo próprio Mário Wallace Simonsen, contada pela sua filha Marylou Simonsen, em depoimento na Comissão Nacional da Verdade. Emocionada e saudosa de um tempo que ainda não passou, ela falava sobre a resposta dele ao mundo de metal que caia dos céus pedaço por pedaço: “A verdade é como um sol, que por mais que as nuvens possam cobri-la, um dia ela vai aparecer”.
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