Muito além do que se ouve e vê

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Equipe Objorc

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6 de novembro de 2020

Imagens retiradas do acervo do IPHAN / Fotos: Luiz Santos / Colagem: Beatriz Gomes

Diante do cenário pandêmico, a internet foi tomada pela onda das lives musicais, que se tornaram um bom entretenimento para apaziguar a introspecção dos dias em quarentena. Uma das mais esperadas foi a de Caetano Veloso, nome de peso da MPB que, junto aos seus filhos, reproduziu parte do seu vasto repertório para os espectadores virtuais. A apresentação intimista logo se tornou pauta para o dia seguinte na Rolling Stone, que publicou um post com os cinco melhores momentos da transmissão. Eis que um acontecimento foi mencionado pela revista como “inusitado e cômico”: Moreno Veloso havia utilizado um prato e uma faca como instrumento musical “improvisado”. Não demorou muito para que fosse apontado o equívoco na colocação já que, símbolo de toda uma tradição, o Prato-e-Faca se trata, de fato, de um instrumento que faz parte da cultura do Samba de Roda baiano.

Uma vez percebido o erro, foi emitida uma nota reconhecendo, lamentando e retirando-o da matéria em questão. Dez dias após a polêmica, em 18/08, a revista Rolling Stone Brasil trouxe a reportagem “Dossiê: o Samba de Roda e o Prato-e-Faca”. Indo direto ao ponto, de forma legítima e livre de estereótipos, a publicação adotou o melhor e mais coerente caminho como forma de retratação.

A leitura se torna uma experiência imersiva já nas primeiras linhas, através de relatos da infância de J. Velloso — produtor, cantor e um dos personagens da reportagem — que convidam o leitor a entender a força da tradição do Samba de Roda no Recôncavo da Bahia. Guiados pelo olhar de quem um dia já foi um menino encantado pela primeira vez com os sons dos ritmos, instrumentos e vozes, é possível começar a alcançar a importância cultural e, sobretudo, de pertencimento que o samba possui naquela região.

“Uma voz, duas vozes, um coro de samba. Palmas se juntavam a tacos de madeira soltos de casa para dar ritmo. Assim, ficava mais alto. Logo, aparecia alguém tocando prato, e isso era muito frequente. E, quando isso acontecia, a festa não tinha hora para acabar.”

Mais a frente, a partir de colocações feitas por Carlos Sandroni, professor de Etnomusicologia, e Marcos Santos, pesquisador das musicalidades e culturas africanas e afrodiaspóricas, são apresentadas as suas raízes históricas que, oriundas da África e trazidas ao Brasil ainda no período da escravidão, são denominadas como um “cruzamento de processos identitários, religiosos e econômicos”. A partir de populações que compartilhavam os mesmos modos de vida, práticas e fé, o surgimento do samba tem um papel fundamental e indiscutível no processo de formação identitária da cultura negra no país.

Levantando pontos praticamente complementares dentro do texto, Any Manuela — que perpetua a tradição de sua avó Dona Dalva Damiana, líder de um dos grupos mais famosos até hoje, o Samba de Roda Suerdieck — e Rosildo Rosário são, respectivamente, uma sambadeira e um sambador que exaltam e reforçam a importância dessa cultura. Dentro de ambas as falas é notável que o caráter de representatividade que reside no ritmo está completamente interligado à herança ancestral que o perpassa. O som do batuque conta histórias de pessoas e lugares que, mesmo em meio a adversidades, encontravam momentos para festejar o seu povo e suas crenças.

Se engana o leitor que achar que o samba é uma coisa só. Costumes, ritmos, danças, estéticas, sonoridades… Estamos falando de uma manifestação cultural diversa. Mas então, como ser capaz de perceber isso? Ouvindo, dançando, estando dentro da roda e vivenciando-a no sumo de suas pluralidades. Contudo, é possível destacar um denominador comum: o respeito, que é base fundamental do valor educativo que a tradição exerce.

“No samba, é preciso ter consciência da hierarquia que tem nele, respeitar, pedir a bênção e valorizar o mestre ou a mestra no samba de roda. É preciso valorizar as pessoas mais velhas e tem todo um processo de educação patrimonial.”

Dentro de uma ampla contextualização feita por Sandroni sobre os processos migratórios que fizeram da Bahia o lugar onde o samba de roda se firmou, é perceptível como esse trajeto está intrínseco ao desenvolvimento da culturalidade brasileira. Em movimento de diáspora, a roda acabou caminhando por diversos estados como Rio de Janeiro, Minas Gerais e Pernambuco até se tornar a eclosão mista e permanente que é hoje.

“As mãos podem ser os instrumentos, porque do simples ato de bater palmas já é possível fazer a sonoridade necessária. O som que se encaixa perfeitamente com todos os outros sons da roda pode ser extraído também de um prato e uma faca nas mãos certas. A primeira utilização do prato-e-faca pode até ter sido improviso, mas transformou-se em elemento fundamental, tocado preferencialmente por mulheres”

Não desviando da polêmica com o Prato-e-faca, que culminou na publicação do dossiê, a Rolling Stone nos apresenta ao instrumento em questão, suas origens, perpetuação do seu uso e, não menos importante, a sua exímia representante e referência dentro do ritmo, Dona Edith do Prato, cuja carreira é premiada e reconhecida nacionalmente. Quando o assunto é tornar o samba de roda visível para além do território do Recôncavo baiano, Edith se junta a outro nome que conhecemos mais a frente, Dona Dalva Damiana, fundadora e percussionista do Grupo de Samba Suerdieck, fundamental para o reconhecimento do ritmo como Patrimônio Imaterial Nacional e da Humanidade. Duas figuras femininas e representativas que há anos usam suas vozes para elevar e conservar a cultura regional.

Nesse momento da publicação, há a possibilidade de reproduzir em forma de vídeo o álbum “Vozes da Purificação”, de Dona Edith. Passear pelas palavras enquanto se ouve a obra é uma forma de tornar quase que palpável a força da cultura nordestina e das mulheres negras, artistas e líderes dessas manifestações. Esses recursos audiovisuais escolhidos para a narrativa junto à explanação de acontecimentos, embasamento, uso de fontes diversas, tornam o envolvimento com o texto contínuo e agradável.

Apesar de toda a riqueza cultural que é mostrada, o texto não deságua na romantização. Não é ignorado ou esquecido o fato de que há a preocupação em torno do presente e futuro do samba de roda. Preconceito, falta de políticas públicas, de espaço nas grandes mídias e em eventos com grande repercussão são problemáticas levantadas por J. Velloso e Any Manuela que se relacionam com as dificuldades enfrentadas para mantê-lo vivo e intacto para as próximas gerações.

Por mais que tenha sido ocasionado por um erro, o pedido de desculpas da Rolling Stone cumpre, com profundidade e harmonia, o objetivo de dar visibilidade ao que é o Samba de Roda por si só e tudo que ele representa. Com a reportagem, a revista cruzou uma linha que muitos evitam: de não apenas reconhecer os próprios descuidos, mas também repará-los de forma eficaz e escancarada. Admirável para o veículo e um prato cheio para o leitor, a reportagem é um retrato do quão vasta e significativa é a musicalidade brasileira.

Giovanna Azevêdo


Dossiê: o Samba de Roda e o Prato-e-Faca” está disponível em:

https://rollingstone.uol.com.br/noticia/dossie-o-samba-de-roda-e-o-prato-e-faca/

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