Luciano Justino
Pra Evandil.
“Literatura de esquerda” de Damián Tabarovsky foi publicado na argentina em 2004 e traduzido e publicado no brasil pela Relicário Edições em 17.
O livro é ótimo pra quem vive nos brasis de bolsonaro (que o word insiste em querer colocar de maiúscula), até pra sentir a diferença, e similaridades, da argentina de 04.
A propósito: a literatura de esquerda é a literatura dos escritores de esquerda? Não!
Para o autor, em geral, o escritor de esquerda é conservador em estética. O escritor de esquerda, digo eu, escreve romanções, poemas didáticos e dissertativos, crônicas edificantes. Portanto, do ponto de vista… estético, e estética é política, o escritor de esquerda escreve quase sempre como a direita.
O que implica dizer que o escritor de esquerda confia demais em suas próprias verdades e nas verdades de sua própria narração. Diz o autor: “as escritas mais radicais do século XX se realizam na crítica à inocência da narração”.
Não necessariamente atrelada ao escritor de esquerda, a literatura de esquerda tem como premissa “o poder arrasador da linguagem, da impossibilidade de controlá-la, de submetê-la”.
É a relação problematizadora com a linguagem que faz com que o escritor da literatura de esquerda seja um “escritor sem público”, um escritor sem “comunidade” ou que escreve numa “comunidade dos sem comunidade”.
Porque compartilhar um público e uma comunidade é compartilhar convenções, acordos tácitos entre discurso e verdade, que precisam de formas comunicacionais e convencionais de “relato”.
Crítico de toda ingenuidade narrativa, o escritor da literatura de esquerda é em tudo oposto aos que escrevem pro mercado e pra academia, que “escrevem a favor de suas convenções”. Acrescento, de seu próprio público.
Para a literatura de esquerda, a academia, o mercado e a literatura do escritor de esquerda replicam os valores e as utopias hegemônicas da sociedade. Ao contrário, a literatura de esquerda sabe que é “sempre decepcionante quando a literatura encarna os mesmos sonhos da sociedade”.
Por isso, a literatura de esquerda se exerce “fora” do mercado e da academia, “dois lugares garantidos”, que constituem dois cânones e duas convenções” e, por extensão, dois públicos. São estes desdobramentos e estas replicagens que permitem a Tabarovsky afirmar: “onde há um cânone, há que se posicionar contra ele”.
Mas a postura crítica face ao cânone, aos cânones, melhor seria dizer, não é a de uma simples recusa, pois “não se trata de ignorar o novo cânone, de fazer como se nada tivesse acontecido. Ao contrário, é necessário anotar, anotar devidamente o ocorrido, e depois investir contra ele, atravessá-lo, quebrar seus textos como se quebra a banca do cassino”.
Portanto, a relação com o cânone é irrecusável, apesar de radicalmente crítica.
Cito um fragmento que resume as premissas do autor:
[A literatura de esquerda] “suspeita de toda convenção, inclusive as próprias. Não busco inaugurar um novo paradigma, mas pôr em xeque a própria ideia de paradigma, a própria ideia de ordem literária, qualquer que seja essa ordem. Trata-se de uma literatura que escreve sempre pensando no lado de fora, mas num lado de fora que não é real; esse fora não é o público, a crítica, a circulação, a posteridade, a tese de doutorado, a sociologia da recepção, a contracapa, o tapinha no ombro. Esse fora nem sequer é a tradição, a angústia das influências, outros livros. Não. Tal fora convencional está vetado para a literatura de esquerda, porque a literatura de esquerda é escrita pelo escritor sem público, pelo escritor que escreve para ninguém, em nome de ninguém, sem outra rede além do desejo louco de novidade. Essa literatura não se dirige ao público: se dirige à linguagem”.
Algumas premissas desta síntese, contudo, me incomodam, sobretudo se observadas a partir desta grande mentira chamada brasil.
1. A academia é isso mesmo?
A primeira delas é sobre o que é a academia hoje.
Minha realidade no curso de Letras da UEPB e na pós em Literatura e interculturalidade me permite observar o lugar da academia numa literatura de esquerda de outra maneira.
Como têm demonstrado pesquisas recentes, o perfil do estudante na universidade brasileira mudou bastante na última década e com ele surgiram novas demandas, novos lugares de fala e de leitura, de uma geração que também já se tornou docente.
Por isso, não acredito que a academia continue a ser esse espaço fechado e convencional. No brasil, ao contrário, tem se transformado num objeto de disputa e de uma das formas principais de acesso à cidadania num país excludente, racista, misógino e homofóbico.
Os ataques do governo bolsonaro, não à academia em geral, teimo em dizer, mas especialmente a algumas de suas áreas, sobretudo humanas, letras e artes, revelam como essas áreas têm proporcionado importantes alternativas críticas aos enlaces identitários dos fascismos.
A recente decisão do CNPq de tornar essas áreas ancilares ao que o governo chama de “áreas estratégicas” (veja você), em geral de saúde e tecnológicas, condicionando a concessão de bolsas a uma relação direta com estas áreas atestam isso. Se há um ataque à universidade em geral, o alvo principal são as áreas que estão produzindo um discurso verdadeiramente crítico à ordem e ao progresso que o atual governo quer nos impor, repito, humanas, letras e artes.
A articulação inconfessável, e profunda, entre estas áreas chamadas de estratégicas e as utopias autoritárias deste governo ainda precisa ser explicada com calma.
Se essa perseguição às humanas em geral instiga nossa ira, não deixa de abrir a ponta de nosso riso de zomba: é isso, estamos no caminho certo.
No PPGLI, por exemplo, a maior parte das pesquisas têm como objeto autores vivos, sempre pensados em perspectivas não convencionais, seja numa nova relação entre cultura popular, erudita e de massa, seja em novos aportes hermenêuticos sobre literatura e religião, literatura e produção de subjetividade, literatura e memória, literatura e minoria, literatura e ditadura.
Por outro lado, o produtivismo que as agências de fomento impuseram na última década à produção acadêmica acabou por gerar uma série de artigos sem leitores, uma proliferação, em muitos aspectos positiva, de leituras críticas que não encontram eco nos grupos hegemônicos das áreas, visto os mais tarimbados representantes orbitarem em torno das revistas qualis A, que de tanto atenderem aos critérios impostos pelas agências, acabaram por engessar a produção em modelos convencionais de escrita, de formas de citação, de enlaces interpretativos que se repetem, constrangidos por regras mesquinhas de avaliação cujo único intuito é atendar ao assédio destas agências, que tornam indissociável o nível do qualis, a avaliação do Programa, a distribuição de recursos.
Em outras palavras, nas bordas disso tudo tem não só se produzido muito, muito não legitimado, inclusive em níveis de TCC, diga-se, como se tem cada vez mais criticado e rompido com este modelo que não consegue dar conta das relações complexas entre sociedade, ciência e literatura. Em outras palavras, entre cidadania, leitura crítica e arte.
Portanto, não aceito sem crítica a premissa de que a academia é este lugar convencional e fechado, antes está ela inserida num turbilhão de dobras que a pressionam de todos os lados, e é assim que deve ser.
2. Vira e mexe, a linguagem
Me pergunto se a saída pela linguagem não é ela mesma conservadora e convencional.
A linguagem é, no livro de Tabarovsky, um conceito estável demais, embora tenha como fundamento ser instável, em crise permanente.
Se o retorno à linguagem, a uma certa concepção de linguagem, não é recolocar a velha autonomia modernista, tautológica, solipsista, que, convenhamos, já num serve pra nada.
Como sabemos, a autonomia da literatura com base na problemática da linguagem, estava em busca da constituição do próprio campo literário, que, como todo campo disciplinar sob a nova divisão do trabalho intelectual no capitalismo industrial, precisava de um objeto e de um método: a poética como ciência da literatura veio em boa hora.
A literatura de esquerda de Tabakovsky arrisca-se reinscrever, 100 anos depois, essa problemática.
Fiquei com a impressão, num livro instigante em todos os aspectos, de que o mergulho na linguagem acaba por ser um modo de se afastar digamos da… “argentina”, por falta de uma palavra melhor, a argentina, essa irrealidade cotidiana, que nos afeta sob o nome de brasil, excludente, convencional, autoritário.
Assim, e colocada nestes termos, a saída pela linguagem arrisca levar a uma literatura à margem da própria política, se política entendemos o “terreno no qual as forças sociais em conflito lutam para estabelecer ‘a verdade’, ou seja, a potência de suas respectivas posições”, nas palavras de Daniela Mussi lendo Antonio Gramsci.
Afinal, quando se diz linguagem se diz exatamente o quê? Quando se tem como fim a problematização da linguagem é para quê?
Desconstruir as convenções da própria literatura?
Imagino que não, que uma literatura de esquerda deva querer algo mais, porque se o alvo for a própria literatura e suas convenções é chutar um cachorro morto e não atingir o principal, o estado de coisas que a vanguarda, sempre evocada pelo autor, quis atingir.
O quê? Aí digo eu, o capitalismo e suas tecnologias discursivas e mais, o patriarcalismo, o racismo, o colonialismo etc etc etc.
Tabarovsky diz que uma das misérias da literatura que se produz na argentina por volta de 2004 não é não ser de vanguarda, é fazer de conta que esta nunca existiu.
Nas palavras do autor: “o insuportável do nosso tempo não é somente que a vanguarda, em sua dialética, tenha desembocado no mercado; mas a quase impossibilidade de ser, hoje, vanguarda. A literatura contemporânea se escreve no rastro dessa impossibilidade, que é a impossibilidade que possibilita uma literatura radical; a impossibilidade que a atira em terrenos inexplorados”.
Se a crítica radical ao fascismo das línguas, pra lembrar o contundente “Crítica e verdade” de Roland Barthes, foi um dos fundamentos das vanguardas, a linguagem nunca existiu sozinha ou o fim último nunca foi/pode ser ela mesma, a linguagem ou a literatura.
O norte foi/é sempre a própria vida, o atravessar da vida nas obras.
Embora a linguagem seja ela mesma viva, pra vanguarda ela importa pelo que nela se atravessa da vida, que é, pra usarmos um truísmo da moda, sempre devir.
A linguagem torna-se problema quando se fossiliza e deixa de dizer as urgências da vida, empaste-la-se simulacro na foto, no filme, na tv. Daí uma literatura da crise, do balbucio, da afazia ao longo de todo o século XX.
Mas algumas questões próprias de nossa época se colocam: o capitalismo neoliberal tem uma lógica “nova”, singular; o próprio campo literário, consolidado na maior parte dos lugares, com suas universidades e seus acadêmicos, vive uma crise de legitimidade, entre outras razões pela expansão de uma literatura em muitos aspectos “comunitária”, uma literatura com público, um público “identitário”, negros, gays, índios, velhos, mulheres, imigrantes…, identidades, táticas ou provisórias, mas que não deixam de remontar a certa tradição ou a querer constituí-la, recolocar suas próprias convenções ou tentando corroê-las desde dentro.
Uma literatura com certa urgência de dizer, de partilhar, de participar. E que precisa de uma nova articulação vida/linguagem, porque as respostas de há 100 anos num servem mais.
O próprio sujeito do capitalismo é outro, outra tecnologia, outra divisão do trabalho, outro endividamento.
O retorno à cultura, a uma relação ácida, problemática, não pressuposta, inconveniente, com a cultura, pode ser uma ótima entrada pra fazer a crítica do chamado capitalismo cognitivo, transformando em potência seus estigmas.
O retorno à cultura é o retorno a uma forma de comunidade para além de todo estigma, uma comunidade não pressuposta, uma comunidade que virá, não uma comunidade passadista que tenta resgatar o que um dia supostamente foi.
Não, uma comunidade cujos enlaces serão sempre estratégicos e provisórios, mas sempre postos, sempre aí a assombrar os abstratos da língua com a carne viva das vidas.
Se língua é um fundamento pras outras linguagens, que embora não se confundam com ela, têm nela um sistema capaz, como nenhum outro, de produzir metalinguagens, de gerar processos críticos que nenhum outro sistema é capaz na mesma proporção, a literatura torna-se não só um lugar estratégico pra uma política de esquerda, pra uma literatura de esquerda, mas sua própria base semiótica.
Em lugar do intransitivo da autonomia, a transitividade destes agoras, tantos.
Assim, a linguagem tem que ser antes uma premissa, não um fim.
Uma premissa ao virá, o que virá que é sempre o que já é, desde agora. Já!
Campina grande, 12 de novembro de 2020
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