Torto arado e os interpretantes

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Equipe Objorc

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27 de novembro de 2020

Luciano Justino

Torto arado, publicado pela Editora Todavia em 19, é um romance de Itamar Vieira Junior narrado por 2 meninas negras, Bibiana e Belonísia.

Cada uma tem a palavra em uma parte do livro, sendo a terceira, a culminância, narrada por um “encantado”.

O enredo gira em torno das relações de trabalho no campo pós escravidão no Brasil, mais precisamente na primeira metade do século 20.

Contudo, as relações que dão lastro à trama se articulam a toda vez com a escravidão. Ela é ainda uma questão não superada, como continuará sendo ainda hoje, a assombrar o presente dos personagens e seus projetos de futuro.

Dito de outra maneira, as relações que se tramam, de trabalho e de afeto, são em parte o resultado dos processos sociais da escravidão, ainda vigentes, mas numa configuração nova erigida por sob as bases econômicas da velha e sem alterar sua substância.

Embora nenhum dos personagens pareçam ter sido escravos, a memória da escravidão, como em toda literatura negra, é sempre atual.

Em resumo, Torto arado é um romance regionalista negro, pra dar um pouco de sossego ao leitor e facilitar o trabalho dos bibliotecários.

Um acontecimento definidor move a trama, a amputação acidental (acidental?) da língua de uma das meninas pela faca da avó, Donana, cuja consequência imediata será estabelecer um novo tipo de relação entre as irmãs e seu em torno.

Dali pra frente, Bibiana conta, “uma seria a voz da outra, reconfigura as “sensibilidades” e a produção de sentidos que as cerca, como a nova capacidade de ler os olhos e os gestos da irmã: “seríamos as iguais. A que emprestaria a voz teria que percorrer com a visão os sinais do corpo da que emudeceu. A que emudeceu teria que ter a capacidade de transmitir com gestos largos e também vibrações mínimas as expressões que gostaria de comunicar”.

O que define a união delas é o corte, a ferida, a cicatriz, e sua inegociável produção de linguagem.

Bibiana continua: “Foi assim que me tornei parte de Belonísia, da mesma forma que ela se tornou parte de mim. Foi assim que crescemos, aprendemos a roçar, observamos as rezas de nossos pais, cuidamos dos irmãos mais novos. Foi assim que vimos os anos passarem e nos sentimos quase siamesas ao dividir o mesmo órgão para produzir os sons que manifestam o que precisávamos ser”.

É essa relação, diria, política, com a linguagem que quero explorar a fim de continuar um devaneio que comecei lá atrás, o de pensar uma semiótica negra.

1. O interpretante da semiótica negra

As palavras de Adilson José Moreira em Pensando como um negro: ensaios de hermenêutica jurídica, podem servir de mote para a estratégia de leitura de Torto arado que estou chamando de semiótica negra: “minha raça determina diretamente a minha interpretação dos significados e normas jurídicas e também minha compreensão da maneira como o Direito deveria operar em uma sociedade marcada por profundas desigualdades raciais”.

Embora a consciência de tal determinação esteja mediada por diversos fatores, inclusive com o risco de seu próprio embotamento e alienação, a estratégia da leitura da semiótica negra encontra 2 tipos de objetos: os que endossam a diferença racial em valores explícita ou implicitamente racistas, e as que, como Torto arado, já as apresenta problematizadas.

Cada um deles exige da semiótica negra um tipo de intérprete. No primeiro caso, o que recusa o interpretante imediato do signo, como nesta frase chistosa de Vítimas algozes de Joaquim Manuel de Macedo, “o desavergonhamento já natural nas palavras, nas ações, nos gozos do escravo”, para interpretar nela aquilo que ela nega ou esconde, seu próprio, do narrador, desavergonhamento.

Neste caso, a estratégia de leitura da semiótica negra precisa fazer leituras impertinentes, não pressupostas, produzir uma espécie de raspagem da camada superficial do signo, cavar, cavar, cavar, até que a verdade do objeto, desvelando-se, se revele.

Por outro lado, a literatura brasileira contemporânea tem sido pródiga na invenção de histórias em que a questão racial é fundante, mas a partir de uma outra perspectiva, a partir da qual personagens ou narradores assumem um ethos marcadamente negro, como neste fragmento de Um defeito de cor de Ana Maria Gonçalves: “fez um enorme discurso sobre os pretos não serem de confiança, pois na nossa alma só tinha espaço para ingratidão e rebeldia, nunca estávamos satisfeitos com nada”. Nele, a assunção do próprio lugar de fala — “nossa alma” — encaminha a reelaboração do discurso racial.

Como é sabido, na semiótica de Peirce, a semiose, o processo de geração de sentido que uma linguagem perfaz, se dá na articulação indissociável de 3 instâncias, signo, objeto e interpretante.

Expedito Ferraz Júnior, no seu certeiro Semiótica aplicada à linguagem literária assim se refere ao processo semiótico: “chamamos de signo tudo aquilo que utilizamos para representar algo, enquanto o termo objeto será usado para designar aquilo a que os signos se referem. Quando associamos um determinado signo a um objeto criamos mentalmente um novo signo, que denominamos interpretante”.

O interpretante não se confunde com o intérprete, porque não é individual, é antes o princípio lógico das convenções de leitura, dos hábitos interpretativos que todo signo, vicário como é, tenta replicar a toda vez.

A semiótica negra reelaborará a rede constituída pela trinca signo, objeto, interpretante; em uma palavra, modificará as leis que regem o ponto de vista do interpretante, cuja interpretação é necessariamente mediada por um objeto tornado imediato pelo significante do signo, pra usar o jargão da semiótica de Peirce.

Daí a importância em Torto arado de 3 perspectivas, sendo uma dela, a do “encantado”, “uma mulher-peixe dentro de outra mulher-peixe”, entidade metamorfa portadora de uma relação outra com o mundo, a partir da qual narra:

“Miúda era uma mulher-peixe, pescava, nadava, dormia de madrugada na beira d’água. Imitava o som dos peixes, mas também sabia imitar o canto dos pássaros. Seus olhos acordavam alguns dias feito sangues-de-boi e pareciam querer saltar e voar por entre as coisas. O sangue-de-boi brincava com seu reflexo no espelho d’água dos rios e das lagoas. Miúda não tinha tempo, nem gosto, nem vontade de mirar no rio, que era veia aberta do seu corpo no meio da mata”.

A consequência em Torto arado é um outro olhar sobre os devires-negros, dentro ou fora da escravidão, sendo a própria escravidão, seu “erário”, observada noutra chave, para além de seus aspectos puramente econômicos ou de produção de mercadoria e trabalho, sem nunca, contudo, esquecê-las.

Torto arado ajuda a estratégia de leitura da semiótica negra a potencializar um interpretante fora do hábito e da convenção, que, sem perder a consciência do hábito e da convenção, do lugar comum, reelabora um novo processo rumo a um novo signo e a um novo objeto, a um novo ser das coisas e de suas representações.

É a esse novo processo signo/objeto, desencadeado por novos interpretantes, que estou chamando de semiótica negra.

2. A faca e seus interpretantes

A faca é o grande signo de Torto arado, seu arqui-semema, pra lembrar as aulas de Pedrinho sobre Saussure na antiga FELCS da UEPB.

A faca, que desencadeia o acontecimento norteador da trama, foi roubada pela vó Donana de um hóspede em uma das fazendas em que viveu, saberemos disso na parte final do romance.

O encontro com a faca e com as virtualidades que ela porta se depreendem nestes fragmentos narrados por Bibiana:

“Fui eu quem desatou o nó, atenta à voz de Donana que ainda estava distante. Vi os olhos de Belonísia cintilarem com o brilho do que descobríamos como se fosse um presente novo, forjado de um metal recém-tirado da terra. Levantei a faca, que não era grande nem pequena diante dos nossos olhos, e minha irmã pediu para pegar. Não deixei, eu veria primeiro. Cheirei e não tinha o odor rançoso dos guardados de minha avó, não tinha manchas nem arranhões. Minha reação naquele pequeno intervalo de tempo era explorar ao máximo o segredo e não deixar passar a oportunidade de descobrir a serventia da coisa que resplandecia em minhas mãos”.

E: “Vi parte do meu rosto refletido como num espelho, assim como vi o rosto de minha irmã, mais distante. Belonísia tentou tirar a faca de minha mão e eu recuei. “Me deixa pegar Bibiana.” “Espere.” Foi quando coloquei o metal na boca, tamanha era a vontade de sentir seu gosto e, quase ao mesmo tempo, a faca foi retirada de forma violenta. Meus olhos ficaram perplexos, vidrados nos olhos de Belonísia, que agora também levava o metal à boca. Junto com o sabor de metal que ficou no meu paladar se juntou o gosto de sangue quente, que escorria pelo canto da minha boca semiaberta, e passou a gotejar de meu queixo. O sangue se pôs a embotar de novo o tecido encardido e de nódoas escuras que recobria a faca”. “Belonísia também retirou a faca da boca, mas levou a mão até ela como se quisesse segurar algo. Seus lábios ficaram tingidos de vermelho, não sabia se tinha sido a emoção de sentir a prata, ou se, assim como eu, tinha se ferido, porque dela também escorria sangue”.

Sumida na maior parte da narrativa, ela reaparecerá no fim para não só dar verossimilhança a eventos importantes, mas sobretudo para engendrar novos sentidos aos fatos narrados agora e anteriormente.

Signo maior da luta pela vida, será utilizada tanto para degolar o marido canalha de Donana quanto assassinar o novo proprietário da fazenda, principal suspeito do assassinato do primo Severo. Também para livrar, nas mãos de Belonísia, Maria Cabocla da violência de seu marido.

Mais importante, no entanto, que tudo isso, sua função convencional de “arma branca”, é ser signo de construção de uma identidade negra, cujo principio básico é a recusa da língua comum e de suas verdades.

A faca é espelho onde se reflete a própria negritude: “espelho mesmo, acessível para nos observarmos, era apenas o espelho d’água dos rios com seu líquido escuro e ferruginoso, onde nos víamos negras num espelho também negro, talvez criado exatamente para nos descobrirmos. Do espelho cintilante da faca de cabo de marfim também não esquecia, afinal, nele havia vislumbrado nossos rostos para num átimo ver a lâmina inflexível fazer cair uma língua com os sons que poderiam ser produzidos por ela”.

Um espelho que é ao mesmo tempo uma máquina de corte, de corte da língua e mais, e imersão numa voz do interdito e do inominável. Nas palavras de Belonísia: “não me furtava a dizer o que faria muitos correrem, temendo a virulência de uma língua. Eram palavras repetidas por minha voz deformada, estranha, carregada de rancor por muitas coisas, e que só fez crescer ao longo dos anos.”

Se a língua desempenha uma função, diria, aglutinante, centrípeta, tradutória, a faca, o centrífugo do corte. Ou melhor, o comum, seu corte.

O corte aqui é mais, faz mais, produz uma ferida, ou melhor, a deixa exposta, porque no limite ela sempre existiu, sempre esteve lá.

Mas é dela mesma, da ferida, do corte, que se conceberá outras leituras do que são, do que eram, do que têm sido, do que podem ser, porque se “uma havia amputado a língua, a outra tido um corte profundo, mas estava longe de perdê-la”.

Para se falar uma voz que não tem voz, será necessário sangrar a língua corrente, cotidiana, usual, o interpretante final do racismo, base ideológica da escravidão e de seu genocídio. Sangrar pra dizer mais, com mais, sobre mais. Ver mais, sentir mais, ser mais. Ser outro.

Trata-se de um novo tipo de relação mediada pela invenção de uma nova linguagem. Para ser mais preciso, invenção de novas semioses, de relações que não são só linguísticas. Relações que não são só humanas, são também técnicas, mercantis, mas que se articulam aos sentidos da terra, ao barulho dos bichos, aos ruídos dos corpos, aos delírios dos rios e das matas.

Enfim, uma outra perspectiva rumo a um outro interpretante.

Campina grande, 27 de novembro de 2020.


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