A literatura, ciência do comum

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Equipe Objorc

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23 de dezembro de 2020

Luciano Justino

Ovírus abriu o mundo ao imprevisto. O real é só insólito. A mônada, porosidade.

Mas, dos muitos mundos possíveis, um já está de antemão delineado: o pior.

No instável enigma da hora, que não passa nem cessa, os oportunistas do capital aliados a um Estado genocida já se articulam para fazer do vírus uma válvula. E nos manter sem respirar.

Essa gente que só aprofunda a sensação de estar em curso o fim.

Contudo, o confim deste agora tem nos dado, apesar das muitas solidões, uma experiência outra com o nosso próprio cotidiano, com os nossos próprios corpos, com nossas próprias distâncias.

Aprendemos a observá-los, a medi-los, a habitá-los para além do hábito, a sentir suas presenças, a perceber, na repetição, suas diferenças.

Ainda mais quando o “mercado” quer invadi-los, ainda mais.

Como meter poesia na bagunça do dia do dia, talvez perguntasse Waly já sabendo da resposta. Como assaltar as gramáticas?

A poesia, esse outro da literatura, inclusive sob a forma da prosa e do romance, simula uma experiência do cotidiano cujo grau de densidade não é encontrável em outro lugar na mesma proporção.

O que me permite dizer que um dos muitos méritos da literatura é produzir uma ciência do cotidiano.

Encontramos na literatura mundos alternativos a este frívolo pior que os coveiros do capital nos anuncia, no modo como ela encena os modos de vida através de uma relação sempre problemática com a linguagem e com o seu poder de referir a vida.

Ela nos ajuda no compromisso ético-político de compreendermos nosso agora como um ambiente de mal-estar, de cisão e de fissura, numa perspectiva de radical criticidade e de esperança desejante. De pormos a unha na fratura, sentir mais acontecer o que já acontece e amplificá-lo. De transformarmos a epidemia num espaço de invenção de novos sujeitos e de novos objetos.

Penso numa perspectiva de ciência da literatura, e da poesia, tão aberta quanto possível em vista da qual ganha nova pertinência hoje a frase de Augusto de Campos, “a verdadeira missão social da poesia seria essa de arregimentar as energias latentes na linguagem para destronar os dogmas petrificadores”.

Os “protocolos” dessa “ciência” merecem um tópico à parte.

1. A ciência, a ciência da literatura

Não vou aqui defender a nobreza da literatura, seu “poder de humanização” (que locução! que edificante!). Não é disso que se trata.

Sei que a literatura sempre foi escrota, terra a terra com o… pior. Fundadora das nacionalidades, monolíngues e etnocêntricas, sempre foi, a seu modo, uma aliada da colonialidade, do racismo, do sexismo, da estigmatização dos pobres.

Recuso também o pressuposto de que a literatura, a poesia e, por extensão, as artes em geral têm função aliviadora, premissa de tantas lives.

Prefiro acentuar sua inerente incompletude, escapar de todo enquadramento duradouro e uniforme, cuja relação sempre tensa com as linguagens, as verdades e seus valores, o próprio cânone o demonstra.

O que é o cânone literário senão a história de suas tensões. Da ascensão de suas margens, e elas são muitas.

Estendo a toda a literatura o que disse Ference Feher sobre o romance, “comporta, na essência de sua estrutura, todas as categorias que resultam do capitalismo, a primeira sociedade fundada sobre formas de vida ‘puramente sociais’, que então não são mais, doravante, naturais.”

Ao colocar “todas as categorias que resultam do capitalismo” operando na experiência diária, as-singulariza, dota-as de articulações e sentidos não previstos. Semiotizando-as, a literatura desnaturaliza as novas naturezas que o capitalismo impõe sob diversas formas de mito. Óbvio, se encontrar um leitor que a mereça.

Quero crer com isso que a ciência da literatura serve de contraponto ao poder da Ciência (com C maiúsculo) de estabilizar e homogeneizar, pois a luta pelo direito à ciência, um tomo novo do debate contemporâneo e que tem no Brasil, talvez, seu epicentro, não pode resultar pura e simplesmente na busca por “vacinas” que mantenham o mundo tal qual tem sido este mundo.

A luta pelo direito à ciência deve se aliar a uma crítica da própria ciência enquanto saber conformante e a investimentos na produção de saberes críticos para-científicos — não por produzirem menos ciência ou uma forma menos relevante desta, o “para” aqui é um verbo de movimento -, mas por estabelecerem com ela uma relação paradoxal e crítica, capaz de apontar-lhe o dedo e puxar pelo colarinho: “- Vem cá!”.

O ataque à ciência, ao pensamento e à arte empreendido pelo governo Bolsonaro e por suas muitas formas de institucionalização da burrice vem atrelado à eleição de “áreas prioritárias”, que não podem se encastelar em si mesmas; que precisam urgentemente se perguntar o que têm a ver, efetivamente, com isto? De onde vem o fascínio dos fascismos por certas áreas e saberes científicos? Há algo ainda sem nome que impregna os próprios métodos, os problemas e a busca de resultados destas áreas e que as torna simpáticas?

A resposta a estas perguntas só pode vir se compreendermos que quanto mais especializado um domínio do saber, quanto menos diálogo ele estabelece com outras “humanidades”, quanto menos “para” é, mais ele se torna cego a suas próprias limitações e inconscientes (inconscientes?) enlaces, a seus serviços prestados ao obscurantismo.

Como disse Susan Buck-Morss, “fronteiras disciplinares fazem com que as evidências contrárias virem problema dos outros”.

A ciência da literatura, sua porosidade, sua ciosa certeza da obscuridade, não seria uma forma nômade de ciência, para usar, provocativamente, a utopia nomadológica de Gilles Deleuze e Félix Guattari?

Uma ciência que não se contenta com os “sólidos”, que tem um apego fraterno aos fluxos; que não tem como fim o homogêneo ou as formas tranquilizadoras do idêntico, mas a forma informe dos monstros e outras tantas monstruosidades comuns e cotidianas?

2. A literatura, o comum

“O problema do poema é um problema de relações”, afirmou Haroldo de Campos na alvorada do Concretismo, interessado no diálogo entre a poesia e as linguagens contemporâneas da música, da pintura e do design.

O jovem poeta imerso na busca de compreender o seu tempo percebeu a questão de fundo de toda a literatura, o primado epistemológico da relação.

Por muito tempo a literatura se definiu pela constituição de um poderoso sujeito individual.

“Aprender a escapar a milhares de pequenas colisões físicas e sociais”, nas palavras de Franco Moretti, constituía um saber viver e uma ética perante o encontro com a alteridade e que, no limite, definia os melhores personagens da literatura moderna (e, convenhamos, toda literatura é moderna).

Mas, ler é hoje cada vez mais buscar no texto o modo como os encontros desencadeiam aquilo que nos é comum, nossa heterogênea comunidade, sem nóia de nostalgia ou metafísica de unidade, na qual uma constante reapropriação do passado e dos modos de vivê-lo agora é sempre aberta e infinita.

A ciência nômade da literatura é sob esse aspecto uma ciência do comum, daquilo que, “apto às individuações as mais diversas” (Peter Pál Pelbart), é a alternativa à “apropriação privada de todas as esferas”, “princípio político da coobrigação”, como bem o definiram Pierre Dardot e Christian Laval.

Alvo das capturas ao mesmo tempo que aquilo que as extrapola, tendo sempre a linguagem como atravessamento, o comum impregna e é impregnado pelas conexões que faz, pelo sensório, pelo afetivo, pelo existencial, pelos protocolos do trabalho, pelas relações de gênero, classe e etnia.

Eu já não quero saber de literatura que não seja interdependência, convivialidade alteritária. Nossos olhos já podem ver nossas diferenças na sua cotidiana negociação com nosso inescapável mutualismo.

É na literatura que esse comum se dá a ver, com uma densidade e uma criticidade não encontrável em outro lugar na mesma proporção, repita-se.

Campina Grande, 23 de dezembro de 2020.


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