O som do rugido da onça, de Micheliny Verunschk

Colunas, Semiótica Negra | 0 Comentários

Equipe Objorc

Equipe Objorc

12 de junho de 2021

Luciano Justino

O som do rugido da onça é um livro sobre a imanência dos começos. Dos começos que não cessam, que atravessam. Que nos atravessam; e que são sempre amanhã.

Sem medo de spoiller, porque, como se sabe, não é possível se fazer spoiller de arte e literatura, O som do rugido da onça parte da história de um rapto.

Do rapto de duas crianças indígenas por dois “naturalistas” alemães, Carl von Martius e Johann Baptist von Spix, que desembarcaram no Brasil em 1817.

Com o consentimento do pai, Iñe-e, uma menina miranha, e Juri, capturado pelos miranhas de uma tribo rival, são levados pra Munique, onde morrem tão logo chegam.

Mas isso é só o começo. Aliás, um começo.

Como todo relevante romance histórico contemporâneo, em O som do rugido da onça os começos são muitos e se desdobram em miríades de outras temporalidades, de outros devires da história, de uma história que só pode ser abundante, excessiva, proliferante.

Ao rapto e ao ofício oficioso da história oficial, dois outros devires se imiscuem: 1. o de Josefa, migrante paraense em São Paulo, em cuja história de Iñe-e sente o emergir de suas próprias potências e que culmina em sua ida a Munique; e, 2. como culminância, o processo de oncificação xamânica de Iñe-e.

Assim, o livro semiotiza 3 devires, embora não só, um devir-homem e outros dois, que, provocativamente, quero chamar de devir-mulher, um nome fantasia pra toda agência das margens.

O primeiro eu chamo de devir-homem porque nele se assume e se problematiza, através da voz de uma narradora que não paga concessão, a razão ocidental, os termos com os quais Martius e Spix empreenderam suas “viagens” e seus muitos “raptos”. Ocupa sobretudo a primeira parte do romance.

O segundo são as diásporas de Josefa e sua produção de singularidade à procura de Iñe-e, um dos nomes dela mesma, com suas “estratégias de apagamento da própria identidade” para re-inventar outra: “eu sou exatamente igual a ela”, “tenho um tanto de sangue kaiapó em mim”. Esse segundo-devir se observa melhor na segunda parte do livro.

O terceiro é o devir-onça como reconquista da memória de Iñe-e. Cobre a terceira parte do romance e, me utilizando de um vocabulário deleuzeano, lhe serve de síntese disjuntiva.

1. Devir-multidão: das histórias e de seus discursos

O som do rugido da onça é um romance histórico crioulo, no sentido que Édouard Glissant dá ao termo. Crioulo porque, como todo romance histórico contemporâneo digno deste nome, cria “um estado de turbulência de sistemas que são colocados em presença uns dos outros”

Um “estado de turbulência” necessariamente tenso, angustioso e assumidamente violento, fora da chave subalternizante da falsa harmonia das mestiçagens e de seus disfarces racistas e sexistas.

Crioulo porque nos permite, ainda com Glissant, “uma nova abordagem da dimensão espiritual das humanidades” e, digo eu, de suas muitas resistências.

Em outras palavras: nele a colonialidade do historicismo ocidental e suas correlatas dimensões de tempo e valor são sempre postas em face de uma ética política da narração, de um narrador que não abre mão de enunciar o seu lugar e os modos como sua própria época observa os mananciais e os discursos sobre eles.

Mas também da assunção do heterogêneo de outros imaginários, do ser de outras agências, dos rastros de outros olhares e de outras vozes.

O som do rugido da onça coloca a razão capataz do historicismo ocidental sobrancelha a sobrancelha com a imprevisibilidade do que é irredutível a toda homogeneidade.

Dele saímos provocados por uma torção do próprio estatuto do valor, de seus modos de ver e ser, de seus modos de saber, a exigir/exigirmos um outro direito epistêmico, pra lembrar Anibal Quijano, um direito aberto à alteridades tantas e a suas muitas semioses.

Senão vejamos.

É numa exposição, “asséptica”, no Centro de Cultura em plena Paulista, “cinco séculos de história do país”, “gravuras da fauna e flora brasileiras”, Hans Staden e Jean-Baptiste Debret, que Josefa dá vazão a suas fugas: “em todo lugar do mundo, em qualquer tempo, há uma mulher fugindo”, fugindo “dos ecos de algum fracasso, ou de uma vida que não soube ou não pôde se reinventar”.

Josefa e a Paulista dão a dimensão exata do devir-multidão que empreende O som do rugido da onça e iluminam tanto a parte um, centrada nos naturalistas e em sua suposta cientificidade, quanto a terceira, o processo de oncificação xamânica de Iñe-e.

Josefa e a Paulista dimensionam no tempo e no espaço a história como barbárie, “os índios vistos como parte da fauna”, mas também a ancestralidade como agência do que resiste, como futuro do passado desde já.

Por isso mesmo, O som do rugido da onça é também um romance-resíduo, um romance sobre os rastros, a exigir toda uma semiótica das imagens, dos sons e das vozes, das escritas e dos seus ofícios.

São absorções de imaginários indígenas, fragmentos de diários de cronistas, viajantes e missionários; manchetes de jornais e revistas, imagens e gravuras, placas mortuárias e autópsias.

Mas também os olhares de Josefa sobre São Paulo e a memória de seu passado, a voz-jaguar da Onça Grande, a fala anfíbia do rio: “eu em nada creio, sou um rio. Eu vou e volto, conheço o chão e o céu, compartilho a língua comum a todas as águas. Atravesso o tempo. Morro e renasço. Engulo e regurgito. Sei dos animais tristes que são os homens”.

A voz dos rios, multitudinal e ancestral, condensar o proliferar dos tempos e dos espaços, o atravessar de cidades, São Paulo-Munique-Belém do Pará, e muitas, muitas matas e corredeiras. É nela, na voz líquida do rio, que se pode observar o movimento dos muitos para impedir o rapto de Iñe-e e do menino Juri: “o rio jogou barrancos de areia no caminho, enviou troncos para atingir canoas, assoprou nuvens de insetos. E bravejava”.

Nesse falar de tantos, reitere-se a ética política de uma narração desde dentro, imersiva, que no entanto não deixar de colocar a toda vez sua diferença, sua própria alteridade: “Essa é a voz do morto, na língua do morto, nas letras do morto. Tudo eivado de imperfeição, é verdade, mas o que posso fazer senão contar, entre as rachaduras, esta história?”.

Expõe as rasuras de Martius e suas manipulações da história, a ponto de colocar em seu diário Iñe-e como prisioneira de seu próprio povo: “Martius escreve e raspa o que escreveu e faz uma nova tentativa de verdade”.

Com ela sabemos o quanto a verdade como vestígio do falso, como bem o disse Guy Debord, serve para justificar o genocídio colonial através de uma límpida escritura pseudocientífica: “expurgar, desviar, eliminar a variação torna-se hábito para quem escreve a história”.

Como consequência lógica nessa babel de vozes, a voz da narradora se assume equívoca, equívoca porque desconfia de suas próprias certezas, as certezas que pacificam o papai-mamãe do significante ao significado e aos enlaces oportunistas com minorias de consumo.

Se “quem não tem palavra está morto, foi o que Iñe-e e os outros aprenderam”, a narração é uma forma privilegiada de escuta, uma escuta que “insubordina os sentidos”, e obriga os falares e suas verdades a assumirem suas próprias vertigens e de seus mitos, sempre num ininterrupto contágio, sempre num contexto que é a toda vez relação, em que identidade, comunidade, nação nunca estão só e em si mesmas, em que todo corpo é multidão.

Ou, nas palavras de Josefa, “que se descobre ou se inventa em conexão com as múltiplas identidades que agregou ao longo da vida”.

2. Iñe-e, menina-onça, menina-xamã

“Esta é a história da morte de Iñe-e. E também a história de como ela perdeu o seu nome e sua casa. E ainda a história de como permanece em vigilância.”

É assim que a narradora enuncia os vetores da narrativa em Iñe-e: perda de nome e casa; morte; vigilância; e que é também a conquista de outro nome, de outra casa e de outro estar no mundo.

Assim como os começos não cessam, a morte significa. É da morte, já anunciada na perda do nome e da casa, que ela faz emergir a memória, através do reconhecimento de sua potência xamânica, desde menina:

“Já a menina mal adormecia, onças, jiboias, quatis, cotias, visitavam ela. Numa noite, ela se ria às gargalhadas, porque estava brincando com oncinha pequena na capoeira, e, na noite seguinte, gritava com os macacos a perseguindo, jogando pedras e sementes na sua cabeça, mostrando muitos ferozes dentes. O sono agitado pelos espíritos dizia a todo mundo que metade dela era pertencente a outro reino”.

É um outro nome, Uaara-Iñe-e, advindo da própria morte, que lhe dá acesso a outra linguagem numa outra diáspora pelo mundo em companhia da Onça Grande, a Dona da Caça, que lhe diz: “tu é minha e, por ser minha, é bom que saiba que tu é onça quando quiser ser”.

Para em seguida perguntar: “olha pra fora do escuro. Uaara-Iñe-e consegue ver?”

O devir-onça de Uaara-Iñe-e, me-lembrou uma instigante distinção que Lélia Gonzalez faz entre consciência e memória em Racismo e sexismo na cultura brasileira.

A tomada de consciência para ela é a face colonial do saber, uma forma de apagamento da memória, em que o sujeito interioriza a ideologia que subalterniza sua própria história, sua própria memória, erigindo o saber do mesmo como única verdade válida, como único modo de ser pertinente:

“Como consciência, a gente entende o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da alienação, do esquecimento e até do saber. É por aí que o discurso ideológico se faz presente. Já a memória, a gente considera como o não saber que conhece, esse lugar de inscrições que restitui uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção”.

Lélia Gonzales me ajuda a pensar que o que estou chamando de oncificação xamânica de Iñe-e é todo um trabalho de des-conscientização do discurso interiormente persuasivo da ideologia colonial.

Se Iñe-e desde menina já sente seus devires xamânicos, é desde menina que a relação dela com essa “consciência”, com esse saber de morte, é tensa, desconstrutora, malgrada.

A seus olhos, Martius e Spix, que a exibirão e ao menino Juri na Europa como se exibe um troféu-animal, não possuem um saber que importa, porque não são capazes de ter “ciência das coisas deste e de outros mundos, o mundo das plantas, dos bichos, dos espíritos e encantados”.

É essa tensão entre consciência, como ideologia colonial, e memória que a faz assumir seu, ancestral, devir-onça, razão pela qual seu pai sempre a teve como inimiga:

“Ainda muito pequena se desgarrou das mulheres que preparavam a yuca e ficou horas desaparecida. Somente a encontraram no fim da tarde. Quando as esperanças de vê-la viva novamente se esvaíam, os parentes a avistaram à margem do rio, em companhia de uma enorme onça; Iñe-e de cócoras, Tipai uu, a onça, a seu lado, a cauda batendo ritmadamente de um lado para o outro, como quem espera, como quem vela, tendo deixado a criança intacta e segura até a chegada do seu povo, quando então foi embora. Naquele dia, o entendimento do pai dizia que a filha, por haver se ajuntado em pacto com a inimiga, mesmo sem ter ciência do que havia de fato acontecido, era agora inimiga como a onça”.

O devir-homem do pai, devir da razão-capataz, desconsidera os saberes ancestrais para melhor se adequar à razão-colonial, “doença de branco”, cuja consequência será “vender” Iñe-e.

A oncificação xamânica de Iñe-e fundamenta sua resistência, seu acesso à memória, uma memória que não remete só ao passado, mas que é ela sempre um estar no mundo, um mundo que nunca é exatamente ou simplesmente este mundo, que é a um só tempo distante, mas tão perto, tão alhures e tão aqui, e que permite a ela ver tanto a história e suas máquinas de morte, “Uaara-Iñe-e viu que sua vida e sua morte se davam por repetidas nas vidas e nas mortes de outras crianças, como a Dona da Caça havia dito”.

Quanto os futuros que culminam neste agora: “se podia ver fábricas trabalhando pra fazer bolas, correias e peias, galochas, ligas e suspensórios, seringas, sacos e cintas. Também se podia ver brancos acumulando ouro ou seu dinheiro de papel”.

Por isso é que Iñe-e volta a Munique, agora como Uaara-Iñe-e, onça nova, onça velha, e que voa. Voa pra caçada, voa pra vingança, “ódio suçuaraneando dentro dela”.

Em Munique, na cumeeira do templo da deusa Diana, “foi aí que jaguara deu seu rugido, e o som do rugido da onça se multiplicou por tudo que é lado, e ninguém sabia dizer que evento era aquele e de onde tinha vindo aquele atroado tão cheio de ferocidade rimbombando por todos os cantos”.

Devir-menina, devir-mulher, devir-onça, devir-memória, devir-vingança: outra história.

Interminável onça!: aos começos!

Campina Grande, 12 de junho de 2021.


Os textos e comentários aqui postados não representam a opinião do ObjorC, sendo a mensagem de responsabilidade do autor.

Escrito por

Escrito por

Equipe Objorc

0 comentários

Enviar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Send this to a friend