Luciano Justino
50 anos dAs novas cartas portuguesas de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa. 50 porque, embora publicado originalmente em 72, o livro foi elaborado entre março e outubro de 71.
50 anos da profunda atualidade deste livro ininquadrável, ainda.
E que envia uma luz provocadora a este brasil do brasil, no qual alguns de nós estão sobrevivendo, ainda.
Como se sabe, As novas cartas portuguesas foi um importante “documento” dentre os muitos acontecimentos que levaram à queda do regime fascista português, cujo marco histórico foi a “Revolução dos cravos” de 25 de abril de 1974.
Tão logo vir a público em 72, o livro foi imediatamente retirado de circulação e as autoras processadas no Tribunal da Boa Hora em Lisboa sob acusação de pornografia, o que desencadeou um movimento internacional de solidariedade às autoras e repulsa à censura e, por extensão, ao regime salazarista de Marcelo Caetano.
Só após a queda de Caetano as autoras foram absolvidas e o livro finalmente liberado.
As novas cartas portuguesas, pra sossegar o leitor, é um romance epistolar, permeado por poemas, ensaios e diversos tipos de textos. Contudo, o leitor verá ao ler o livro que o melhor a fazer é não enquadrá-lo em nenhuma forma fixa, porque é da não fixidez que ele se alimenta.
Gravitando em torno de diversas questões protagonizadas por mulheres, Maria, Mariana, Maria Ana, Monica, Joana, o livro é uma crítica demolidora a vários aspectos não só do Portugal dos finais dos 60 e inícios dos 70, mas da própria cultura europeia, de seu inerente patriarcalismo e colonialismo, da hipócrita moral burguesa e cristã, das diversas clausuras impostas às mulheres desde pelo menos…
O mote: as Cartas portuguesas de “amor incondicional” da freira Mariana Alcoforado (1640–1723) a um oficial francês, publicadas na França em 1669 por Claude Babin, cuja autoria só foi revelada em 1810 por Jean- François Boissonade.
As cartas de Mariana Alcoforado, uma freira de família influente e abastada da Portugal barroca, enclausurada num convento em Beja pra cumprir as vontades “políticas” dos pais, abrem uma história de dissidência e de escândalo.
Mariana, através de seus muitos alter egos, de suas muitas permanências, de agora e de além, será a principal personagem dAs novas cartas portuguesas.
A missivista barroca e suas clausuras funcionam nAs novas cartas portuguesa como uma espécie de mito fundador, mas um mito de outra cepa, pra usar uma linguagem recorrente neste brasil do brasil, um mito que tem na variação e na rasura seu modo de ser.
Nas palavras do próprio livro, um mito “desflorado”: “Sinto essa alegria de se haver desaconchegado um mito, desflorado uma lei”.
Recolher o livro sob a pecha de pornográfico é uma acusação por demais óbvia pra desqualificar um livro escrito por 3 mulheres, a chave-mestra do sexual é sempre o álibi que o patriarcalismo encontra pra domar a paranoia da própria, dele, clausura.
Então invertamos a ordem pra dela melhor nos livrarmos. De fato, o censor fascista e a máquina judiciária tinham razão, uma razão delirante, como é toda razão, porque o livro rompe mesmo a fronteira da “boa moral”.
Todo livro de mulher, assim como de preto, gay, indígena, em uma palavra, todo texto de minoria, precisa se avizinhar do escândalo pela simples razão de não lhe ser pertinente reproduzir o papai-mamãe da língua e de seus coliformes patriarcais, coloniais, raciais.
Todo livro minoritário é por natureza impublicável, logo pornográfico. Ou, nas palavras das próprias autoras: “Terminemos com mistificações e falsos pudores”; “Claro que sou uma puta, podes estar tranquilo…”
1. Autoria e re-escritura da história
As novas cartas portuguesas é um livro que faz extraviar os nomes.
Como nos ensinou S. I. Hayakawa, nas línguas ocidentais o nome tem função estabilizadora, “redime” um mundo complexo de relações a uma ordem identitária. Pro autor, o fluxo caleidoscópico das coisas acontecendo é enquadrado numa estrutura lógica que as compartimenta em lugares estáveis, a isso ele chama “lógica aristotélica da linguagem”.
Maria é, sem dúvida, um dos grandes nomes-valise das línguas ocidentais, um nome clausura, um nome sem fora.
NAs novas cartas portuguesas, contudo, elas são 3, formam uma trindade paradoxal, oximórica, em uma palavra, sacrílega. Maria torna-se aqui um nome transitivo, um nome que escorre, Maria Isabel…, Maria Teresa…, Maria Velho…, no qual a própria autoria, um outro nome-clausura, é, desde o começo, um problema que torna inócua todo fechamento autoral, pois nenhuma das cartas é assinada, apesar de todas serem meticulosamente datadas.
É vão procurar a qual Maria pertence esta ou aquela carta ou voz. Maria é nome-multidão. Um nome legião, luciferino, que não vem pra “redimir” o nome, mas pra ultrapassar todo limite até a borda do abismo.
Na “Segunda carta III” lê-se: “Bem sabemos, entretanto, que nosso limite é só o tempo, e que estamos sempre longe de nos definir até à nossa morte. Absurda é essa ideia de se fazer das pessoas conjuntos fraccionáveis, e se nos dizem todos que absurda é a morte, como se compraz alguém em nos fixar num presente sem fim, num último retrato? Vos desfizemos, então, em nosso sustento”.
“Também ainda não sabemos o que inventar; como abandonar essa definição pelos limites, como inventar amor que reconheça todos os abismos”.
A função-autor, uma forma de controle sobre os sentidos dos textos, aqui inseparável de uma produção de identidade-estigma, identidade-abjeta, daí a pecha de pornográfica, é/são continuamente rasurada(s).
Daí os processos de singularização das Marias em Mariana, Maria Ana, Joana, Monica… de sorte que não é só Maria que se extravia pra ser/viver outras vidas e outras identidades, a própria Mariana barroca se desdobra em muitas, incorpora outros modos de ser, outros tempos e outros lugares, é ao mesmo ancestral e contemporânea.
Por isso, o livro contém um quê de romance histórico como reescritura e atualização das Cartas portuguesas de Mariana Alcoforado e de seu entorno, mas que não interpreta a autora, sua vida, sua obra, seu tempo, sua clausura, nem a mitologiza numa chave idealizante, antes a faz falar, uma fala que revela a violência de que foi vítima e é ela mesma violência, vingança, para além de toda impossível reparação, como no contundente “A filha”:
“Veio pedir-me Antonio que te vá ver e te perdoe… Pedir-me-ás tu, também, que te perdoe? Esperarás tu que me incline sobre essa cama onde já começaste a apodrecer e te beije a teste a fim de morreres tranquila?”
Segue: “Enganaram-se, de minha boca nunca ouvirás uma palavra que em alguma coisa se possa aproximar de perdão. Pelo contrário: até à morte e mesmo depois dela, seguir-te-á meu ódio: pois não me condenaste para todo o sempre a esta prisão onde me puseram por louca?”
A consequência disso é uma das marcas mais instigantes do livro, um certo anacronismo, certa tensão/torção entre tradição e contemporaneidade, com diferentes níveis de textos e de usos da língua, que se articulam formando uma configuração nova do presente, caleidoscópica, descentrada, múltipla, velha e atual.
Se os textos iniciais fazem uma espécie de inventário de Mariana Alcoforado e de outras tantas mulheres sacrílegas, situadas lá atrás, logo logo a deambulação dos nomes trazem à cena as urgentes questões contemporâneas, a guerra de libertação colonial, as formas subalternizantes do trabalho feminino sob o capitalismo, a imigração, a literatura e o que pode a literatura em face de tudo isso…, o corpo, os corpos.
2. Dos corpos políticos e de suas imagens
Se o pessoal é político, como disseram as feministas de meados do século XX, esse pessoal o é em razão de uma dimensão nova do corpo, de um corpo que atravessa e é atravessado por todas as instâncias da vida; um corpo que, no ato mesmo de ser semiotizado, é através do qual que o mundo se torna partilhável e vivencial: “Ouve minha irmã: o corpo. Que só o corpo nos leva até aos outros e às palavras”.
NAs novas cartas portuguesas, me chama atenção duas imagens do corpo: de um lado, um corpo manipulável, um corpo clausura, um corpo sexualmente uno e castrado, um corpo-estigma; do outro, um corpo intensivo, indomável, inominável, um corpo-multidão, capaz de fazer explodir a própria diferença sexual.
Sobre o primeiro deles, o corpo-clausura e castrado, lemos: “E contou-me, há anos, uma amiga minha, médica, que no banco do hospital eram tratadas com desprezo as mulheres que entravam com seus úteros furados, rotos, escangalhados, por tentativas de abortos caseiros, com agulhas de tricot, paus, talos de couves, tudo o que de penetrante e contundente estivesse à mão, e que lhes eram feitas raspagens do útero a frio, sem anestesia, e com gosto sádico, ‘para elas aprenderem’”.
Aqui, o próprio conceito de “tecnologia de gênero” de Teresa de Lauretis, que “engendra os sujeitos por meio de códigos linguísticos e representações culturais”, assume uma dimensão escandalosamente literal, tão comum e cotidiana. O discursivo se “aparelha” em práticas que lhe revelam ao mesmo tempo o resultado, “tentativas de abortos caseiros”, e sua origem, “pra elas aprenderem”.
Mas há uma outra semiótica do corpo, um corpo altivo, um corpo-agência, um corpo que imanta o mundo de uma outra intensidade, de uma outra ecológica, multissensorial, que “cobre a casa com o seu véu de espessura”, como se lê na “Segunda carta IV”:
“Volto-me defronte do espelho, desviando os braços para a cama onde ponho a camisa. Viro-me e entorpecida deixo que a nudez me atinja com a sua suavidade adolescente de seios pequenos, firmes e ancas macias por onde os dedos descem, se perdem, se reencontram ainda na pele esticada, plana da barriga, a fim de logo se abrandarem na vertigem do púbis. E apenas as pernas, longas, lisas, aguentam o peso do que vejo; apenas os pulsos, tensos, dirigem o que tenho e te conduzo o pênis na lenta introdução em mim: minha lonjura e morte consentida, minha total reconstrução da vida. Exercício de ti: tuas ilhargas duras, tua magreza indomada sobre a minha. Ó espasmo. Ó todo sol. Ó imensas terras abrasadas a perder de vista, meu Alentejo de orgasmo na plena aridez dos dias e nos dias, onde dantes se erguiam seus conventos. Ó meu meigo, meigo, meigo violento”.
Essa outra dimensão do corpo, que descontrói os significados a priori e que, ao fazê-lo, desmonta a ordem dos papeis e dos próprios discursos que lhe dão sustentação, tem no excerto “O corpo” um de seus momentos mais significativos, porque joga com os próprios lugares do leitor, com sua ideologia, com sua própria, do leitor, tecnologia de gênero, com a estabilidade de seu olhar.
Aparentemente descrevendo um corpo de mulher, “ali estava o corpo adormecido”, como é recorrente na tradição literária, o fragmento inverte a posição do objeto em sujeito, revelando um olhar de mulher que erotiza o corpo masculino, sua fragilidade, sua vulnerabilidade, num vocabulário que se utiliza, ironicamente, de “enquadramentos” análogos:
“E aí segue a perna tão abandonada no lençol que quase o fere com seu peso, e entre as coxas, renascendo da sombra do ventre escondido, e que se estende com savana cálida, que em si retém o amarelo da luz, na curva nascente das nádegas, nas coxas, nas pernas, entre as coxas o seu sexo, os dois pequenos pomos cuja firmeza se desenha na pele branda e a corola recolhida de seu pênis adormecido”.
Uma poética da inversão, que invade como seus os territórios da masculinidade para melhor torná-los não pertinentes, a fim de semiotizar um corpo imantado de novas sensações e novos sentidos, que assume como próprio, para desconstruí-los, rasurá-los e reinvesti-los, todos os significados do estigma, positivizando o abjeto como forma nova de produção de singularidade, daí as muitas leituras que hoje se fazem do livro numa perspectiva queer.
Enfim, um livro sobre clausuras, em suas muitas configurações e através de seus muitos tempos e permanências.
Mas sobretudo um livro sobre o fogo das liberdades que centelha sob as cinzas.
Campina Grande, 19 de junho de 2021.
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