(Foto: Reprodução Elle View / Arte: Beatriz Gomes)
Embora ainda esteja envolto em estigmas e sendo visto com maus olhos por muitas pessoas, o funk se consolidou como um dos principais gêneros musicais da cena nacional. Fruto de uma mistura de ritmos norte-americanos como o hip hop, rap e soul music, o funk brasileiro tem por característica inconfundível letras que contam, em sua grande maioria, experiências das periferias e favelas do país.
Por aqui, o boom definitivo desse estilo musical aconteceu na década de 80. Desde então, ele atravessou diversos processos de transformação, experimentação e apropriação – não apenas de ritmos, mas também de discursos de cunho sociopolítico. Dentre essas mudanças, os anos 2000 foram berço de uma das mais necessárias e representativas: a presença feminina, que abandonou o único lugar que lhe era destinado anteriormente – de inferioridade e submissão, e passou a existir também enquanto figura de destaque, com espaço para expor suas próprias perspectivas e vivências.
Em reportagem publicada no mês de abril de 2021, a Revista 180 – Narrativas Femininas apresenta a temática da mulher enquanto protagonista no funk. Os holofotes da matéria, no entanto, estão voltados para um dos principais nomes desse movimento de empoderamento feminino atualmente: MC Carol, cantora e compositora que aborda em suas letras as problemáticas em torno de questões de raça, desigualdade social e, principalmente, de gênero.
Inicialmente, o texto nos introduz à figura pública que é famosa pelas composições autênticas e de estilo inconfundível. Em seguida, somos intimamente convidados a conhecer Carolina de Oliveira Lourenço, menina criada em um bairro periférico do Rio de Janeiro e que, desde muito cedo, encontrou na música uma maneira de construir sua história longe do tráfico de drogas, um dos mais infelizes destinos trilhados por muitos jovens da favela.
Apesar do glamour que a fama proporciona, o caminho para se tornar uma artista conhecida nacionalmente foi íngreme e árduo. Com passagens retiradas da entrevista com a cantora, é impossível deixar de notar que o machismo presente nas músicas majoritariamente cantadas e escritas por homens, que objetificam e, por vezes, até ridicularizam a figura feminina, é nada além do que o retrato da realidade vivida por ela e por outras tantas em um meio onde o tratamento dado a partir de diferenças de gênero é qualquer coisa, menos igualitário e respeitoso.
“Era muito perigoso. Imagina uma menina de 16 anos, criando corpo, cantando putaria. O pessoal achava que eu vivia aquilo que cantava. Os homens viviam passando a mão em mim. Uma vez, em um show, um monte de homem subiu no palco e começou a passar a mão em mim. O pessoal da produção não podia fazer nada, eu tive que parar o show para eles descerem”. – MC Carol
Através de intertítulos, trechos de composições e recursos de reprodução de alguns de seus videoclipes – desde os sucessos mais antigos aos mais recentes -, ao avançar da reportagem, enquanto fazemos esse percurso multimidiático, é possível se debruçar sobre a carreira da funkeira. A partir da narrativa traçada pela reportagem e das falas de Carol, não é difícil perceber que, apesar de utilizar a comicidade como aliada em suas letras, o seu repertório é também um espelho da consciência dos papéis que ocupa socialmente – mulher, negra, periférica, gorda. Assim, a artista utiliza a sua voz e a visibilidade que possui para hastear as bandeiras de tudo aquilo que acredita.
“Eu sou Marielle, Cláudia, eu sou Marisa
Eu sou a preta que podia ser sua filha
Solidariedade, mais empatia
O povo preto tá sangrando todo dia
Eu não aguento mais viver oprimida
Nesse país sem democracia
Eu tô me sentindo acorrentada, desmotivada
Eu também naquele carro fui executada
Eu tenho ódio, pavor, eu sinto medo
A escravidão não acabou, estão matando os negro”
Trecho da música “Marielle Franco”
Apesar de possuir uma figura principal para a história contada e atender bem ao que se propõe – nos introduzir à trajetória e importância de Carol na cena musical -, o material é vago no que diz respeito a outras fontes que dêem maior respaldo ao assunto como, por exemplo, outras personalidades que também representem a escalada do movimento feminino e feminista dentro do funk, bem como musicólogos que tragam considerações sobre o surgimento, ascenção e o preconceito sofrido pelo ritmo ao longo das décadas. O que acontece no texto, porém, é que toda a contextualização e desdobramentos ficam nas mãos da artista e da jornalista.
Contudo, vale pontuar que Mariana Alvernaz, autora do texto, não recai na superficialidade do tema e cumpre bem o papel de revelar as circunstâncias que levaram o funk a se tornar uma arte marginalizada. Fazendo uma ponte com as questões sociais trazidas por MC Carol, é exposto um problema que ultrapassa o preconceito musical e adentra feridas mais profundas e complexas. Afinal, o que é capaz de tornar um ritmo e as histórias que ele conta tão incômodas para quem não está inserido na realidade ali apresentada por esses personagens da vida real? A justificativa para a maior parte desse desconforto e para as inúmeras tentativas de censura ao funk consiste no retrato de um dos piores traços da essência racista e elitista da parcela da população brasileira que ainda insiste em reprimir tudo aquilo que não vá de encontro com o que, para eles, é aceitável e digno de respeito.
Nesse aspecto, as músicas de Carol são o contragolpe à discriminação que vem de fora e de dentro do próprio meio artístico. Para se desprender de qualquer pré-julgamento ao ouvir o beat do funk, basta conseguir compreender a ideia básica e primordial de que cultura não é somente o que nos agrada ou atrai, mas sim qualquer manifestação que reflita a identidade de um grupo de pessoas, mesmo que não compartilhemos dela.
Após trazer uma série de reflexões, o texto se encerra com os planos da funkeira para o futuro da carreira, o que deixa evidente que as dificuldades enfrentadas desde o início não são sinônimo de desânimo. Em um movimento contrário, é justamente daí que vem o combustível para a explosão que Carol é. Assim, uma coisa é certa: é merecida a sua consagração e reconhecimento como um dos nomes que deram força à metamorfose pela qual o funk passou até se tornar ferramenta com potencial de representar causas políticas.
O movimento de mulheres que, assim como Carol, vêm fazendo história na música é responsável por munir de empoderamento e consciência social a população feminina, negros, LGBTs e outros grupos silenciados cotidianamente. Um dos hits mais famosos e marcantes da MC, “100% feminista”, traduz o desejo de mudança da realidade dessas pessoas de forma direta e simples: “Me ensinaram que éramos insuficientes. Discordei, pra ser ouvida o grito tem que ser potente”. Que assim seja, e que o grito de tantas Carolinas espalhadas por aí não seja calado nunca mais.
Giovanna Azevêdo
“MC Carol: funk como instrumento de liberdade sexual feminina e consciência social” está disponível em: https://revistaumoitozero.com.br/mc-carol-funk-como-instrumento-de-liberdade-sexual-feminina-e-consciencia-social/
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