(Arte: Maria Clara Teixeira)
Um texto de Iago Duarte
Como trazer narrativas novas onde não existe algo necessariamente novo? Esse é um questionamento que alguns produtores jornalísticos em períodos específicos do ano fazem. Como trazer algo novo no período de São João? Que história nova poderá ser contada no Natal? Quando levamos isso para uma editoria que trata sobre uma temática específica, isso pode tornar-se uma tarefa ainda mais árdua. Por exemplo, como trazer conteúdos jornalísticos esportivos novos em uma região onde o futebol é rei e não está mais em período de competições esportivas? E o público observa essas repetições temáticas e se cansa dessas mesmas histórias que não acrescentam nada de novo.
Bem, essa é uma situação que vários veículos estão sujeitos a passar. Mas aqui, vou me focar em um veículo específico: a editoria Nossa, do Uol. Sendo voltada para o mundo da viagem, moda, gastronomia, modo de vida, entre outras questões que são correlatas, a Nossa realiza coberturas especiais em épocas específicas como o São João. E nesse período que acabei de citar, esse ano eles realizaram uma série de conteúdos chamada Arraiá. Como já era esperado, nessa série são apresentadas receitas típicas, tradições… Mas ela vai além disso.
A Nossa já realiza desde de 2020 uma série de reportagens chamadas “Receita de Família”, onde é apresentado uma família e como determinada receita tem uma ligação com ela. Eles incorporaram essa série de reportagens com a cobertura junina da Nossa. Decidi abordar uma reportagem específica: “Baião de dois e guisadinho é fartura nordestina em receita de família de PE”, por Mônica Santos.
A reportagem tem como personagem central o chef de cozinha Rivandro França. Já a receita é o baião de dois. E a relação que existe entre os dois é deixada claro já na primeira linha da matéria: memórias, mais especificamente do seu pai dividindo a comida entre ele, seus irmãos e sua mãe. Essa talvez não seja apenas a do Rivandro, mas de vários outros nordestinos que realizavam esse mesmo ritual para que todos da família tivessem como se alimentar. O cerne central da reportagem é esse trabalho de rememoração e a Mônica constrói a matéria formando elos entre o passado e o presente de uma maneira que possibilita fazer com que o leitor possa formar paralelos com a sua própria vida, mas também faz com que possamos entender como o nosso passado influencia em nosso futuro. Tudo isso utilizando o real. Tais questões apontam para o ponto que me deixou mais encantado pela reportagem: o comum.
Em um jornalismo onde o que não deveria ser banal se tornou o novo normal, é raro termos conteúdos jornalísticos que abordem o comum de uma maneira reflexiva, complexa, humanizada e talvez até bela, no contexto mais filosófico da palavra como aprofundado pelo Umberto Eco, onde o filósofo italiano afirma que utilizamos o belo como um adjetivo para aquilo que nos agrada. E assim, o belo se vincula ao que é bom. No entanto, em nosso cotidiano não temos apenas como bom aquilo que nos agrada, mas aquilo que gostaríamos de ter. A partir daí, uma infinidade de coisas acabam se tornando boas e assim, belas. Inclusive, coisas corriqueiras da nossa vivência em sociedade.
Nesse sentido, o documentarista (mas que também já deu sua contribuição ao Jornalismo) Eduardo Coutinho é a primeira pessoa que vem à mente quando é falado sobre tratar o comum. O comum de moradores do edifício, de praticantes de religiões, a história de um homem negro comum, entre outros “comuns” que o diretor abordou ao longo de sua carreira. Isso é uma tarefa árdua, que custa tempo e dinheiro, que muitas redações jornalísticas não estão dispostas ou não possuem para dar. Mas que por meio dessa reportagem, demonstra ser um esforço realmente recompensador.
Ao longo da reportagem, são tratadas outras questões, como os papéis sociais de gênero, orgulho de suas origens e a luta em viver da culinária. Todas elas tendo como personagem principal o Rivandro. Quando a Mônica faz isso, ela expande o campo temático da matéria e trata sobre questões que ainda são temas de debate na sociedade. Talvez não sejam aprofundados da maneira que eles merecem, mas lembro que o foco da reportagem não é esse. Por meio do Rivandro, temos um exemplo de como essas questões são problemáticas dentro de uma sociedade que ainda possui nelas muitas feridas que ainda não foram cicatrizadas.
Ao final da reportagem é apresentada a receita do baião de dois. Não há nada muito novo aqui. Talvez poderia ser utilizado mais elementos visuais como infográficos ou até mesmo um vídeo mostrando a preparação. Porém, são utilizadas imagens para servir como referência para o leitor, que acabam suprindo essa necessidade. A reportagem também cita a questão do bullying devido ao uso do chapéu de couro de meia-lua pelo Rivandro, mas o tema não é aprofundado. A minha interpretação como leitor sobre essa falta seria por uma decisão consciente da autora ao não trazer uma sensação de repetição devido a essa situação já ter sido retratada em outros conteúdos midiáticos.
A Mônica Santos conseguiu por meio da reportagem trazer sua contribuição a uma nova roupagem de coberturas jornalísticas mais originais sobre nossas tradições, aqui especificamente o São João. Por meio das memórias do Rivandro conseguimos ter uma referência sobre como questões dentro de uma realidade tão complexa como é a brasileira afetam a população. Tudo isso sem deixar de abordar as festas juninas.
Uma leitura interessante ao qual demonstra como a história do homem e da mulher comum pode aprofundar a nossa visão sobre o mundo ao nosso redor de maneira significativa ou causar uma identificação por parte do leitor, papel também importante dentro do jornalismo.
O certo é que podemos aprender algumas coisas aqui. Até mesmo, a arte de fazer um bom baião de dois.
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