Luciano Justino
“Quanto a Clarice, já foi mais”, foi assim que uma amiga se referiu a Clarice Lispector quando lhe enviei a oralização do fragmento de um conto.
“Ando sem saco pra literatura grã-fina”, pilheriou.
Novos modos de ler e pensar a literatura impactaram o lugar de Clarice entre nossos amores. Lê-se agora sempre em face de demandas que chamo de cidadãs (pra não ter que procurar outra palavra).
O melhor leitor contemporâneo confronta as obras com questões de etnia, gênero e geração, classe e região, embora não abandone critérios propriamente literários ou estéticos.
Há um enlace muito nosso entre literatura e política fruto de uma pulverização, positiva, de pontos de vista e de lugares de escrita que fazem da literatura em geral e da brasileira em particular verdadeiro objeto de disputa.
1. De fato, quanto a Clarice…
Pensemos Clarice, então, numa chave “cidadã”.
Parte relevante da crítica especializada vê em Clarice aspectos que facultam uma crítica do patriarcado e de seus tentáculos.
Confesso aqui meu incômodo quanto a tais leituras: o que vejo em sua obra do que posso chamar de um devir-mulher (mas o que diabo quer dizer isto) não raro remete uma visão vitalista e pré-discursiva. “Sou placenta” e “sou orgânica”, lê-se em Água viva.
Quando seus melhores personagens se insinuam para além das imposições da lógica familiar burguesa e heteronormativa, retornam sempre a uma natureza cheia de ritmos, odores e sabores, onde uma potente atividade secreta se realiza, mas para a qual têm pouca ou nenhuma consciência tática que as leve a uma verdadeira ruptura.
Elas tendem sempre a voltar à ordem.
Como a Ana de Amor, que depois do turbilhão sensualista no Jardim Botânico, volta pra casa, como uma barata tonta, ao lembrar das crianças e do jantar.
No capítulo “Atos corporais subversivos” do Problemas de gênero, Judith Butler analisou as limitações das alternativas pré-discursivas e vitalistas como crítica ao patriarcado. Para ela, a natureza, assim como os sentidos do tato, do olfato e do paladar, a maternidade como metáfora e o mais que o valha, nada mais fazem que reiterar a mesma ordem que se quer questionar.
O corpo e a natureza ou o corpo como natureza é um dos eixos de uma grade estruturante que fundamenta a própria “lei paterna”, que investe o corpo de uma discursividade desde sempre política e, por extensão, subalternizante.
Ou seja, na ordem patriarcal, inclusive no seu estágio neoliberal, o corpo é um poderoso aglutinador de estigmas de gênero, raça e classe.
Há vários exemplos incômodos na grande obra de Clarice quanto a isso.
A “gorda” de Felicidade clandestina, “baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme…”, está no lado oposto ao da narradora, do grupo das “bonitinhas”, das que gostam de ler, para as quais a felicidade está na leitura, o que pressupõe um enlace problemático entre corporeidade e ignorância ou sabedoria.
O corpo neste conto não funciona como simples aferidor estético, aliás nada funciona como tal, mas como uma metáfora de excludente de saber.
Macabéa de A hora da estrela e Janair de A paixão segundo G. H., resumem os riscos de premissas primitivistas e pré-discursivas, com seus peculiares componentes de ancestralidade “natural”.
“Embora a moça anônima da história seja tão antiga que podia ser uma figura bíblica. Ela era subterrânea e nunca tinha tido floração. Minto: ela era capim”.
“Agora eu entendia que a barata e Janair eram os verdadeiros habitantes do quarto.”
2. Mas… quanto a Clarice
Mas a grande obra de Clarice não para aí.
Deve também ser lida numa perspectiva barroca, com dobras e circunvoluções, fazendo-as se multiplicarem em ambiguidades e ambivalências.
Seus melhores textos, as narrativas longas, acionam tantos outros devires, devires efetivamente de ruptura, raramente encontrados em outro lugar com a mesma intensidade e potenciais libertários.
2 coisas me chamam atenção e que me permitem manter Clarice entre os escritores que mais têm a dizer a nossas demandas do presente. 1. A crítica radical à supremacia de um eu obsedante, mola mestra de nossa literatura, mas não só, de boa parte da melhor literatura do século XX também, e 2. sua recusa de um enredo “forte”, e por isso mesmo da própria história oficial, de uma história do acontecimento.
Vale a esse respeito retomar a Janair de A paixão segundo G.H..
Embora ela tenha se demitido na véspera, a narradora não lembra seu rosto e tem dificuldade em lembrar-lhe o nome, “quis lembrar-me de seu rosto, e admirada não consegui”; “mas seu nome — é claro, é claro, lembrei-me finalmente: Janair”.
Mas os trabalhos imateriais de Janair, sua ausência cheia de historicidade para além de uma história pressuposta pelo próprio esquecimento, coloca-a na origem da razão de ser da própria obra, o devir intensivo da narradora em busca de uma desesperada alteridade: “Janair era a primeira pessoa realmente exterior de cujo olhar eu tomava consciência”.
É Janair como alteridade radical em sua recusa em permanecer “servindo”, que desencadeia a crise narcísica de G.H., obriga-a se abrir para além do que pressupunha ser a articulação controlada entre o seu próprio eu e o mundo.
A partir daí, a crise do eu não poderá manter o mundo intacto na velha ordem: “se eu for adiante nas minhas visões fragmentárias, o mundo inteiro terá que se transformar para eu caber nele”.
O mundo se abre a seus outros: “a esperança, na minha vida anterior, teria se fundado numa verdade? Com espanto infantil, eu agora duvidava”.
O turbilhão desencadeado pelo encontro com a alteridade de Janair e seu “outro mundo do mundo”, se transforma num questionamento da própria linguagem e de sua pertinência pra dar conta de uma “nova” história.
É como crise da própria historicidade que entendo as conhecidas formulações barroquizantes, tão recorrentes em sua obra — “a mulher tinha nojo, e era fascinante”, “a crueza do mundo era tranquila”, “o jardim era tão bonito que ela teve medo do inferno”.
Mas também, e principalmente, a recusa de grandes acontecimentos, a preferência por “odes mínimas”, mas que são capazes de desencadear o represado de novas existências.
Seus melhores livros nunca são livros sobre acontecimentos, Clarice jamais teria feito um romance histórico.
Suas estórias pressupõem antes uma nova ancoragem do acontecer, sempre no infinitivo. O acontecer em seus melhores livros é outra coisa para além de uma história exterior à própria vida e por isso mesmo pode brotar de um mínimo limiar.
No instigante livro que escreveu sobre a obra de Gilles Deleuze, David Lapoujade conceitua um acontecimento como aquilo “através do qual tudo recomeça, mas de outro modo; somos redistribuídos, às vezes reengendrados até de modo irreconhecível. Tudo se repete, mas distribuído de outro modo, nossas potências sendo incessantemente revolvidas, retomadas, segundo novas dimensões”.
É assim que o próprio estigma e o aprisionamento numa corporeidade vitalista e pré-discursiva, tão recorrentes, podem ser “revolvidos” até se tornarem “irreconhecíveis”.
Fecho com 2 fragmentos de Água viva, crítica do eu e recusa de uma história do acontecimento:
“Construo algo isento de mim e de ti — eis minha liberdade que me leva à morte.”
“Alguma coisa que tivesse começado — pois onde começaria? E que terminasse — mas o que viria depois de terminar? Como vês, é-me impossível aprofundar e apossar-me da vida, ela é aérea, é o meu leve hálito. Mas bem sei o que quero aqui, quero o inconcluso. Quero a profunda desordem orgânica que no entanto dá a pressentir uma ordem subjacente. A grande potência da potencialidade”.
De fato, Clarice já foi mais. Clarice precisa de mais. Demais.
Campina Grande, 11 de dezembro de 2020.
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Artigo ótimo