As “leituras pretas”, como são consideradas por muitos as obras do poeta baiano José Carlos Limeira, nos propõe lembrar as tradições preservadas pelos descendentes dos antigos escravos. Sua inconformidade está registrada, magistralmente, através da poesia. Nesta arma de versos, em sintonia perfeita, são captadas as mais sutis estratégias de luta e resistência histórica do povo afro-brasileiro.
Tal qual Limeira, outros autores, não necessariamente poetas, também tentam escrever sobre essa resistência, e alguns deles conseguem, mesmo que por apenas um único dia. Talvez por se tratar de uma demanda na agenda, talvez por iniciativa própria. Ou talvez por ser um 20 de novembro, Dia da Consciência Negra no Brasil.
Para o país, uma data. Para Gileide Ferreira, mais um dia de resistência. Um dia entre tantos anos de luta para que sua cultura continue respirando, existindo. No texto, personagem da história, na vida, mulher quilombola de sangue e de força, que não se perdeu ao longo do caminho quando precisou deixar de pisar o chão rural para conviver com a vida urbana. Vida essa que foi resumida e contada em um portal de notícias — um recorte cultural lembrado através da escrita, mesmo que por apenas um único dia.
É o que traz do barro moldado, para a tela do computador, a jornalista Clara Rezende, repórter do G1 Paraíba, que precisou ouvir a força da fala de uma remanescente do Quilombo para, de alguma forma, cumprir o papel que lhe cabe, e dar voz ao processo de construção de múltiplas identidades.
Na reportagem, Clara Rezende vai direto ao ponto quando decide iniciar o texto com uma das falas da personagem da história: “Eu não quero deixar essa cultura acabar” são as primeiras palavras escritas, apresentando a fonte principal da história com seu próprio discurso — que revela a luta pela preservação de uma identidade que resiste.
Gileide Ferreira,
A voz que resiste faz parte de uma das três unidades remanescentes de quilombos em área urbana do estado.
A autora do texto, Clara Rezende, também enxerga a história da personagem remanescente do Quilombo como um outro tipo de resistência, que tem ganhado força ao longo dos anos: a representatividade da mulher na sociedade. Essa que, no texto, não é colocada de maneira diferente. A fonte da repórter perpassa a identidade étnica e destaca a importância da figura feminina na valorização e desenvolvimento da comunidade da Serra do Talhado:
“(…) para a artesã, as mulheres da Serra do Talhado têm um papel importante nesse processo de fortalecimento.”
Como já se coloca desde o início, reforçando a ideia de que a comunidade quilombola na área urbana só existe devido à força e resistência dos antepassados, a personagem da história destaca nomes de luta como a irmã Maria do Céu, e a avó, Rita Preta. Pessoas que, para Gileide, são o real sentido de persistir na preservação de sua cultura.
É neste ponto em que Clara Rezende descobre e nos passa uma identidade moldada pelo barro, fonte de renda para Gileide e tantos outros remanescentes do Quilombo e que, na Serra do Talhado, possibilitou a criação de uma Associação de Louceiras negras da comunidade. Um trabalho que além de resistir ao tempo, quebra os preceitos de uma sociedade urbana — espaço em que a artesã, ao tentar trabalho distinto como qualquer outro cidadão, relata ter sofrido os preconceitos marcados na história do Brasil, por simplesmente ser e transparecer ser o que é e de onde vem:
“(…) Se eu agisse de outra maneira, eles iam continuar me discriminando, só a forma de eu ser: do Talhado, ser negra.”
A reportagem ressalta a ideia de consciência e revela, assim como tantas outras já publicadas no país, que o negro ainda permanece à margem da sociedade, mesmo lutando para se fazer sujeito da história. O que Marcos Cardoso (2002), autor de O Movimento Negro em Belo Horizonte, tenta explicar ao escrever que, nas décadas de 70 e 80, os conceitos de quilombo e resistência são recolocados no contexto das lutas da população brasileira de origem africana, no esforço de resgatar o papel do sujeito na formação social brasileira. E isso ganha sentido quando a personagem da reportagem, Gileide, diz que foi “necessário explicar a história e a cultura do povo para que a comunidade fosse certificada como remanescente de quilombola”.
Entramos então no que Clara Rezende escolheu definir como tradição e processo de certificação da cultura da personagem, quando a autora do texto apresenta elementos que marcam a identidade da comunidade, como a modelagem do barro — uma fonte de renda — e a música, elementos esses enraizados e passados de geração a geração.
Mas a autora do texto não se restringe a protagonista da história, e traz, para afirmação e complementação do que quer transmitir ao leitor, dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária na Paraíba (Incra/PB), através da antropóloga do Serviço de Regularização de Territórios Quilombolas do órgão, Maria Ester Fortes, que enaltece as particularidades e pluralidade de cada comunidade, reafirmando as diferentes dinâmicas existentes, como sendo o que impossibilita determinar a influência cultural que o meio urbano pode ter sobre elas:
“Porque a gente faz essa associação, normalmente, de que uma comunidade isolada preserva sua cultura, mas cultura é uma coisa dinâmica. Tanto na zona urbana, como na zona rural, cultura não é uma coisa estática, então sempre é um processo em movimento. A comunidade está sempre dialogando com seu entorno.”
Resistência é uma palavra em destaque em quase toda a reportagem, porque, para a personagem do texto, não basta a luta pela afirmação de onde ela vem e o que ela é, mas ainda há a tomada de frente de Gileide na representação da comunidade, corroborada pelo medo dos outros integrantes. Aqui enxergamos um ponto alto do que escreve Clara Rezende, quando Gileide sugere que “(…) o medo pode ser um dos motivos que tem afastado outros dessa luta.” Luta essa tida como realidade constante e prioridade na vida da personagem remanescente do Quilombo.
Mesmo que por apenas um único dia, a autora insiste em mostrar ao leitor o porquê a história da personagem está associada à situação atual e às decisões governamentais do país. Clara Rezende tenta, de acordo com o Ministério Público Federal, mostrar como os cortes orçamentários refletem na vida e na cultura de Gileide: “(…) é algo muito preocupante, porque tem praticamente colocado ao pó o sonho de ter o seu território demarcado”.
Há ainda a preocupação da repórter de instigar o representante do Ministério Público da Paraíba (MPPB), que acaba por explicar que “há uma lei em que o Governo do Estado é autorizado a demarcar terras quilombolas e essa lei nunca foi posta em prática (…)”. Aqui, portanto, já conseguimos compreender o porquê da inconformidade do poeta Limeira (1982), que afirma: “com a arma do verso, tento expressar desencantos, as minhas angústias e fazer minhas denúncias contra o estado de coisas que eu vejo e constato”.
“(…)
Ergue Quilombos, aqui, ali
Em cada mente, em cada face
Impávidos como Palmares, impávidos Ilês
Em todos os lugares”
(José Carlos Limeira)
É desta forma que o poeta baiano — assim como a paraibana Gileide Ferreira, protagonista da reportagem de Clara Rezende — considera-se o quilombola de hoje: como aquele que recompõe seu território e o torna um espaço símbolo para o resgate da identidade da população negra, identidade essa pensada a partir da luta, da resistência.
Érica Ribeiro
A reportagem “‘Não quero deixar essa cultura acabar’, diz integrante de comunidade quilombola na PB” está disponível em:
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