Um passeio pela história brasileira que pega carona na história do cordel ou será um passeio pela história do cordel que pega carona na história brasileira? O quarteto Murilo Roncolato, Guilherme Falcão, Ariel Tonglet e Ricardo Monteiro embarcaram em uma jornada para construir um texto cirúrgico, contando a trajetória do cordel brasileiro – tendo como pano de fundo a história nacional – desde suas raízes lusitanas até a sua reconfiguração nos blogs e migração para a internet. Um dos trunfos da reportagem talvez seja permitir aos desavisados – ou não – caminhar junto aos passos do cordel brasileiro e rapidamente dar-se conta de parte de sua riqueza histórica e cultural.
Com o título “Os versos e traços da literatura de cordel”, o leitor é convidado a imergir na narrativa e logo percebe que o conteúdo ali apresentado não é de sorte simplório, tampouco trata-se de uma notícia fast-food. Digerir o que é dito, embora não exija tanto esforço intelectual, devido à linguagem clara com que é escrito, requer do leitor empenho para manter-se atento ao texto pela extensão do mesmo. É verdade que por se tratar de um material produzido exclusivamente para a internet, o Nexo Jornal preocupou-se em transformar a experiência do leitor em algo mais interativo e sedutor, tentando, quem sabe, diminuir o peso – talvez enfadonho para os mais inquietos – do referencial histórico trazido acerca do desenvolvimento do cordel ao longo dos anos.
Uma das estratégias usadas para isso está em permitir ao leitor não apenas informar-se sobre, mas vivenciar uma relação própria com a literatura de cordel, claro que munida e reconfigurada pelo uso das tecnologias. Uma sacada que trouxe ao material a inserção da declamação e interpretação dos poemas que originalmente eram cantados:
“É então, entre o final do século 19 e início do 20, que surgiram os primeiros cordelistas, determinados a levar os versos antes cantados para o papel. Isso porque, antes de qualquer folheto impresso surgir no nordeste brasileiro, a poesia se fazia cantada. Os protagonistas eram os chamados cantadores ou violeiros.”
No momento em que o Nexo Jornal traz o ator e intérprete João Alves, declamando as “Proezas de João Grilo”, de João Ferreira de Lima, estabelece-se uma ponte entre passado e presente, e com isso se traz para as telas a memória dos cantadores que foram ferramenta fundamental para a propagação do cordel Brasil afora.
Munido de algumas seções demarcadas por subtítulos, o texto se desenrola apresentando bem o desenvolvimento histórico do cordel, a maneira como é produzido, bem como resgata a memória das suas gerações de escritores, tantos deles paraibanos, como: Leandro Gomes de Barros, Manoel D’Almeida FIlho, Paulo Nunes Batista e Apolônio Alves dos Santos, José Soares (Poeta Repórter), por exemplo.
Este último, é referência quando estabelecemos a conexão cordel – jornalismo. O Poeta Repórter, como José Soares assinava os seus cordéis, trazia em seus versos os acontecimentos relevantes do momento. Como diz um trecho da própria matéria:
“Em paralelo aos cordéis que imaginavam histórias com dragão ou um pavão misterioso, havia também poetas que se ocupavam de comentar fatos recentes com a urgência que cabia a um jornal. Eram os chamados folhetos circunstanciais, que tratavam de relatar a morte de um presidente, o resultado do jogo de futebol ou o crime que chocou a cidade.”
Neste ponto, a matéria traz uma linha do tempo com vários exemplos do que seriam os folhetos circunstanciais, um misto de poesia e informação que leva ao povo do interior o que acontecia Brasil afora. Algo de uma importância indescritível, já que tempos atrás o acesso ao rádio e à televisão eram restritos aos centros urbanos e aos mais abastados. A internet, por sua vez, era um sonho distante no Sertão nordestino. Alguns exemplos de assuntos tratados nos folhetos: A passagem do cometa Halley, no cordel O cometa; A seca de 1915 no nordeste, em O retirante; e A morte de Getúlio Vargas, em A morte do maior presidente do Brasil.
Não se pode deixar de destacar aqui também a maneira didática como o texto oferece ao leitor a possibilidade de compreender o processo de criação do cordel. Especificamente no tópico “Rima, métrica e oração”, os autores ruminam sobre e demonstram como ocorre a mágica das rimas. Inclusive, é dentro deste tópico que é posta uma ferramenta na qual é possível entender como se formatam a ‘Sextilha’ e o ‘Martelo Agalopado’, formatos usados para organizar os versos. A ferramenta possibilita ao leitor verificar a maneira como as rimas se apresentam nos diferentes formatos. Mais que informar sobre a técnica, este sutil detalhe pode ajudar a despertar o gosto ou interesse do leitor em se aventurar na escrita de alguns versos, propagando esse tipo de produção.
As palavras escritas na matéria não dão conta apenas de transmitir e informar sobre os aspectos técnicos, talvez frios para alguns, com que se formam os cordéis, mas também são reflexo de uma luta travada contra o tempo ao longo de mais de um século.
E a resistência se faz até mesmo nas batalhas entre a zincogravura e xilogravura. A primeira usada pelos mais abastados, com traços finos e detalhistas davam mais classe ao cordel, aos que assim acreditavam. A segunda, por sua vez, entalhada em madeira, dava forma às ilustrações que visualmente adiantavam ao leitor os contos que viriam mais à frente. Na guerra entre madeira e zinco, venceu a madeira, representante que com mais baixo custo possibilitou a reprodução em larga escala. Interessante também é o questionamento que se pode fazer: por que vence a xilogravura? Por sua ‘rusticidade’? Seria o rústico um legítimo representante da cultura nordestina? Em outro momento este questionamento é posto na matéria, e que bom que é. Afinal, o que pode definir a cultura como tal? O apego purista às formas originais, o entalhar rústico ou os traços finos? Questões como essas são postas ao longo do texto de maneira sutil e podem ser percebidas pelos mais atentos.
E assim a matéria inicia, caminha e se encerra, transitando entre dados, história, depoimentos e cordel vivo e experimentável. Talvez este seja o maior trunfo dela. O cordel vivo – como assim prefiro chamar – não foi posto apenas como um simples personagem, foi posto e preparado para ser degustado, sentido e experimentado, assim como um prato que se serve no intuito de, senão convidar a também cozinhar, a viciar o paladar e, com isso, abrir caminhos para novos banquetes, fortalecendo e perpetuando traços de uma cultura.
Anderson Costa
A matéria original “Os versos e traços da literatura de cordel” pode ser encontrada em:
https://www.nexojornal.com.br/especial/2017/05/03/Os-versos-e-tra%C3%A7os-da-literatura-de-cordel
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