A escrita enquanto antídoto em tempos de pandemia

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Equipe Objorc

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20 de novembro de 2020

Fotos: Larissa Zaidan; Felipa Damasco; Caio Ramalho / Montagem: Beatriz Gomes / Trechos retirados da reportagem do Uol Tab

268 dias.

O isolamento social é a indicação para que você não se contamine com um vírus que surgiu no final do ano de 2019 e que mudou completamente a vida de bilhões de pessoas durante o ano de 2020, fazendo com que as pessoas fiquem em casa, tenham suas rotinas alteradas e sigam o que é chamado de “novo normal”. Durante esse tempo todo dentro de casa pude me perceber como nunca antes, confesso aqui que entendi dores antigas, esqueci amores, chorei pelos que se foram, ri de mim mesmo, simplesmente me percebi. Para além de mim, notei a eclosão de um movimento que luta pela igualdade racial desde os tempos da dita “descoberta” do Brasil. Em meio a crise do coronavírus, o “Vidas Negras Importam” dominou redes sociais e ruas pelo país. Na quarentena escrevi alguns textos, entre eles um que relatava a aceitação da minha identidade e do sujeito homem, gay e negro que vive em uma sociedade que oprime.

Em uma vertente musical que se expande entre os aplicativos de música e em sites como Youtube, o rap queer ganha espaço e forma em um contexto de pandemia. Tiago Dias escreveu em junho deste ano a reportagem “Trajetos e afetos: Rico Dalasam e Jup do Bairro cantam renascimentos em EPs” para o Tab da Uol. Nela é possível entender o processo criativo de letras que narram as suas histórias de dor, de amor e de identidade dos artistas. Os cantores que se destacam entre a comunidade LGBTQIA+ e rompem as barreiras da bolha quando passaram a atingir indivíduos para além da sigla. Na reportagem é possível perceber as memórias dos músicos e como elas dão forma e corpo para as letras das músicas que compõem as faixas dos EPs lançados recentemente. Nelas é possível entender a rotina de pegar ônibus na maior cidade do país até a maculação de corpos negros com a ascensão da violência policial que as periferias precisam enfrentar constantemente.

Rico Dalasam conta suas histórias de amor, hora afrocentrado, outras interracial. Relata como os corpos negros não são apaixonantes ao abordar as dificuldades para se relacionar. Na música Síndrome de Estocolmo, o artista escreve sobre essa questão e afirma as complicações de ser parceiro e estar em relacionamento que dói, mas deixá-lo doeria bem mais ao se perceber, novamente, sozinho:

“Marreta logo esse peito

E chama o vice

Você me reserva sempre

Essa tentativa de homicídio

Turno em dois empregos

Tendo que ouvir no meu serviço

Que essa vida que eu levo é um relacionamento abusivo

Me sinto a janela cheia de adesivo

Tentando ver paz num treteiro impulsivo

Me julga e dá a sentença

E com uma frase de amor me faz absolvido”

Por sua vez, Jup do Bairro também escreve sobre o seu cotidiano como moradora do Capão Redondo, bairro periférico da capital paulista. Neste momento, o repórter direciona o leitor para uma reflexão voltada ao social, a fala da artista a respeito de como realizar os seus sonhos é difícil. Enquanto mulher trans, negra e periférica, percebe como eles são cortados o tempo inteiro, e por vezes esquecidos. No texto, Tiago destaca como a cantora lidou ao ver sua música hitando nas redes e nos aplicativos de música, colocando a lágrima, a comemoração e o reconhecimento enquanto artista em evidência.

Jup também usa suas letras como ferramenta de colocar as pautas negras em discussão. Em “Luta por Mim”, canção de letra forte, a artista narra a situação — atual? — do sujeito negro brasileiro: “Sua hashtag foi o ponto final / Dizer ‘vidas negras importam’ para você foi o grande diferencial / É que toda vez a mesma merda / Vocês matam o meu de carne pra fazer o de pedra / Movido pelo tesão por tragédia / Agora morto eu tenho mais voz do que vivo, parece comédia”.

Em uma simples leitura da reportagem, é possível perceber como o repórter coloca o processo de escrita das composições de ambos os artistas como ferramenta de descompensação de seus traumas e dores, dando destaque ao processo criativo dos cantores e como a escrita pode servir como alento para as feridas que trazemos. O texto de Tiago é rico em detalhes e dá margem para uma reflexão sobre diversos aspectos, entretanto, é encerrado de forma muito carrancuda. O leitor não espera o fim como ele é posto pelo escritor.

Em setembro deste ano, a revista Cult trouxe o texto poiesis, pharmakon, escrito pelo professor doutor em Filosofia pela USP, Tarso de Melo. Na sua escrita, percebemos que, na situação que enfrentamos atualmente, a poesia, a escrita e a arte podem ser medicamentos para diminuir nossas dores e dissabores.

Nunca se consumiu tanta arte como nos últimos meses. Séries e filmes são as alternativas para uma tarde ociosa, as lives no final de semana são escapatórias quando ficar em casa ao invés de ir para a mesa de um bar é a atitude mais sensata a se tomar, a música é companhia durante os afazeres diários, livros estão sendo (re)descobertos e estão deixando de enfeitar as prateleiras de quartos e escritórios. Nunca se escreveu tanto, seja poema ou crônica. Nunca se desengavetou tantas poesias, as redes sociais fomentam a leitura de poetas para os seus seguidores e estes por sua vez os compartilham, e assim a palavra escrita pelos sensíveis ganha engajamento e auxilia na desintoxicação de ter que digerir números — se me permitem relacioná-los — de mortes, de aumento de preços e dos candidatos que começam a surgir para uma disputa eleitoral que nunca se renova.

Tarso é certeiro ao colocar em seu texto que a poesia é remédio:

“Vivemos tempos doentes, e a poesia, que sempre age contra os muros que cercam nossa percepção, agora parece ainda mais forte quando a vida entre quatro paredes é o limite físico do nosso mundo e quando, entre elas, temos que lidar com tantas aflições.”

É assim que ocorre com as canções de Rico Dalasam e Jup do Bairro, que em suas letras, depositam seus anseios e suas reivindicações para assim aliviar as suas e as nossas dores. Ao atingir, principalmente, um público que rotineiramente enfrentam os desafios de ser um sujeito social jovem negro e periférico num país como o Brasil, os compositores estabelecem um diálogo certeiro e que serve como elemento de empoderamento diante de uma sociedade que marginaliza ainda mais os corpos negros.

Alan David


A reportagem Trajetos e afetos: Rico Dalasam e Jup do Bairro cantam renascimentos em EPs pode ser lida na íntegra clicando no link.

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