Imagens do acervo pessoal de Maria Eugênia | Colagem por Beatriz Gomes
Conhecer os ritmos tradicionais do nosso país, que formaram-se a partir da nossa gente e do encontro com outros povos, pede realmente uma viagem não só ao nosso passado, como um passeio atento ao nosso presente — da maresia do litoral, até a sombra do pé de castanhola do Sertão.
A reportagem “Bailarina resgata danças populares brasileiras”, nos guia por esse caminho. Uma produção de Elisabete Pacheco e Laís Borges, arte de Nikolas Espíndola, roteiro de Elaine Pereira e Laís, imagens de Alexandre Calado e edição/finalização de Samuel Wendel. Veiculada no jornal da Globo News — na coluna ‘Culturando’, ao longo de 05 minutos e 25 segundos, podemos conhecer a experiência única da bailarina Maria Eugênia Almeida, ou simplesmente, Tita.
Acontece que Tita é bem mais que bailarina. Ela também é historiadora, pesquisadora, dançarina, e brincante. Mas, o que é ser brincante? Ser brincante é de família. É que antes de ser tudo isso, ela é filha dos multi artistas Antonio Nóbrega e Rosane Almeida. O que se esperaria que brotasse de um solo desse? Falando em processos, terra e vida, é importante perceber que durante esse nascer e crescer, Maria Eugênia traçou seu caminho a partir de experiências e referências físicas e emocionais da arte popular, com a qual seus pais pesquisam, trabalham e vêm colecionando ao longo do tempo. Agora, Tita busca um conceito muito seu, tendo como trilha as estradas do nosso país.
“Planta do Pé” foi o título escolhido por ela para fertilizar o seu projeto de resgate e expressão da dança popular, tema que ela estuda há mais de doze anos, e que transformou em espetáculo de dança. Já são cinco anos nos palcos, apresentando o que na verdade serve como espelho, mostrando para o povo a sua ancestralidade.
A repórter Elisabete foi muito feliz quando iniciou a reportagem dizendo:
“Um encontro de nós para nós mesmos […] ‘Planta do Pé’ nasce fincado na raíz da nossa cultura.”
Ela abre então a janela da história que o espectador está prestes a conhecer, propondo uma reflexão acerca da sensação de pertencimento, com muita sensibilidade:
Mas, que raízes são essas? Para começar, podemos dizer que se trata da raiz do caboclinho, do samba de roda, do maracatu, e da ciranda. Essa viagem começou em setembro de 2019. Maria Eugênia iniciou sua jornada passando por mais de 40 cidades, onde já realizou diversas apresentações do espetáculo e oficinas de dança. Nesse estradar, ela começou a acessar um processo natural entre lançar a semente, regar, e esperar o tempo certo de colher o que carregava em sua bagagem.
Por mais que sua jornada seja um processo solitário, além de estar acompanhada por um punhado de pessoas e histórias que encontra pelo caminho, Tita conta com a companhia de um personagem também protagonista nessa história: o Cabeção. Literalmente uma cabeça gigante feita de papel machê e jornal, que pega emprestado o seu corpo humano para fazer de alma e assim ganhar vida. Tita informa brevemente que buscou a referência nos bonecos’ ‘Cabeçudos’, uma tradição existente no Nordeste do Pará. A cidade que ela se refere é São Caetano de Odivelas. É de lá que vem a história que iniciou nos anos 50, durante a tradição dos ‘bois de máscara’ no carnaval, quando um odivelense no ápice da sua criatividade festiva, desenhou uma ‘careta’ numa caixa grande, a colocou na cabeça fazendo de personagem e começou a dançar,chamando atenção das outras pessoas que começaram a criar também os seus bonecos divertidos. Por lá, a mistura do folclore com a festa popular vem arrastando os foliões no ritmo do frevo durante todos esses anos. E por cá, ele serve para além da alegria — Cabeção surge com um propósito também pedagógico -:
“Ele é um pouco esse pretexto para interagir com as culturas locais. Então por meio dele eu troco, eu me aproximo, as pessoas se divertem… E aí brincam juntos, então ele vem sendo esse meu interlocutor.”
Ela explica sobre o Cabeção ser esse instrumento facilitador da comunicação e integração com as culturas locais por onde ela chega. Não sei se o sorriso humilde do boneco, o cabelo ou os braços leves sempre convidando para um abraço, mas alguma coisa especial o faz ser querido por pessoas de todas as idades.
A partir disso a matéria nos dá um balaio cheio de personagens, todos eles com muita propriedade para ocupar aquele espaço de fala. Os três primeiros são: Alexandre Moraes (poeta e jornalista), Sandrinho Palmeira (poeta) e Isabelly Moreira (poetisa), todos eles da cidade de Afogados da Ingazeira, uma região do Pajeú pernambucano conhecida como “o berço da poesia”. Na cidade uma lenda diz que há muitos anos uma viola foi enterrada no leito do Rio Pajeú. Desde então, quem bebeu de sua água, virou poeta. Isso pode até não ser verdade, mas foi a forma que o povo encontrou para explicar o porquê da existência de tantos poetas em um só lugar, na cidade em que poesia popular virou disciplina obrigatória das escolas municipais, que todo mundo sabe fazer versos e, que antes de pedir pão ao padeiro ou cumprimentar o carteiro, se diz primeiro: “bom dia,O poeta! “
Esse trecho da fala de Alexandre Moraes nos faz entender a importância do projeto para eles, a valorização do que é de sua gente, e a ideia de que seus costumes também são bonitos e importantes, como os reproduzidos pela grande mídia, assim como a fala da Isabelly Moreira:
“O ‘planta do pé’ faz com que a gente olhe pros pés da gente, ele faz com que a gente olhe ao redor.”
As entrevistas não foram feitas pela equipe de reportagem, elas foram pescadas do acervo pessoal de Maria Eugênia, e estrategicamente colocadas para melhor construção da narrativa audiovisual. Logo, aparece um outro personagem que não está creditado na matéria. Afinal, quem é o homem que está representando o ‘Instituto Trancoso’? Ele é o Ivamar de Figueiredo Alves, e fala pela Instituição sem fins lucrativos que oferece educação básica para mais de 590 crianças da Bahia, o terceiro Estado que o projeto ‘Planta do pé’ chegou.
Depois dessa andada pelas terras do Pajeú e de sairmos da Bahia, somos levados até a efervescência de Recife e Olinda, onde o Helder Vasconcelos, que é músico, ator e dançarino, fala da sua felicidade em receber o Cabeção no ensaio do “Boi Marinho”, a brincadeira de rua inventada por ele em 2000, e que arrasta uma verdadeira multidão de foliões sempre que desfila em suas cores branca e vermelha.
Além dessa pluralidade de fontes situadas, a reportagem também nos presenteia com imagens de arquivo que são muito ricas e bem utilizadas em várias passagens, seja do espetáculo, das viagens, ou da interação do público nas ruas. É importante também frisar a escolha do enquadramento da entrevista. O plano médio (como é chamado tecnicamente na linguagem audiovisual) é usado frequentemente para documentários e entrevistas de modo a concentrar o espectador na fala do personagem, que está centralizado na tela. Nesse caso especificamente, há um ponto positivo na escolha da edição: a mescla entre a fala da Maria Eugênia e a ilustração dos outros momentos, fazendo o espectador não só entender o que está sendo dito, como também verificar e sentir a troca, a alegria, e a aceitação do público, tornando assim, um material muito mais dinâmico.
A reportagem cumpre o seu papel quando nos faz voltar dessa viagem com a certeza de que o Brasil é um país de vários galhos. Depois do seu trabalho de plantio, Tita distribui os frutos por onde passa:
“A minha vontade é essa, de gritar pelo Brasil: gente quanta coisa bonita a gente tem aqui!”
Não é difícil compreendê-la. O que está distante da gente é bonito e também tem a sua importância, mas, tudo isso que está perto de nós, mesmo que de forma inconsciente, é um pedaço da gente também.
Sarah Cristinne Firmino
Assista a reportagem na íntegra em:
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