Luciano Justino

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Equipe Objorc

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11 de dezembro de 2019

Foto-montagem com referência à poema do livro ¿Pode um preto voar?

Uma literatura de multidão é muito mais uma literatura que pensa o que fazem os personagens secundários do que os protagonistas e os narradores.

Doutor pelo Programa de Pós Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Pernambuco (2005), com tese intitulada “Poiesis de campos: poesia e poética em Augusto de Campos”, Luciano Barbosa Justino é um estudioso das possibilidades da linguagem e tem experiências na área de Letras, com interesse em poesia e prosa contemporâneas. Autor de livros diversos, dentre suas obras destaca-se a inserção e discussão do conceito de multidão, disponível mais especificamente em Literatura de Multidão e Intermidialidade: ensaios sobre ler e escrever o presente (2014) e Literatura de Multidão: crítica literária e trabalho imaterial (2019). Como argumenta o próprio autor, sendo a multidão uma premissa, só é possível partir da multidão enquanto hipótese. A partir disso é que ele aponta caminhos para uma outra leitura em torno da literatura brasileira. Uma leitura múltipla, plural, com o efetivo exercício crítico que revisita obras, temas e personagens, propondo um olhar transversal, revelador em certo sentido. É nessa medida que, em paralelo aos textos teóricos, a multidão surge mais uma vez no seu livro de poemas ?Pode um preto voar!, que está sendo lançado pela editora Patuá. Nessa conversa com o ObjorC, o professor pesquisador aprofunda o tema, discute a potência conceitual da multidão na produção contemporânea da literatura nacional, não deixando seu papel de crítico ao estabelecer essas e outras relações, como a que se estabelece com a mídia e o jornalismo, e as visões em torno das representações sobre o Nordeste. Ao final, já poeta, nos brinda com a sua poesia.

ObjorC — Como podemos pensar o conceito de multidão e como ele se aplica à literatura?

Luciano Justino — O conceito de multidão tem uma larga história no pensamento político. Ele remonta a Espinoza e foi retomado por pensadores do século XX, tais como Walter Benjamim e Siegfried Kracauer. Mais recentemente o pensamento político, sobretudo italiano, Antonio Negri, Paolo Virno e Maurizio Lazzarato, retomaram o conceito numa perspectiva ainda mais radical. É preciso entender antes de mais nada o conceito de multidão como uma premissa, não um resultado. É importante partir daí porque não se pode conceber a multidão como um fim ao qual se chegaria. A multidão como premissa quer dizer, antes de mais nada, que todo corpo é uma multiplicidade de estratos, toda subjetividade já é em si multidão. Sob este aspecto, a multidão como premissa questiona o princípio de um sujeito voltado para si mesmo, como autonomia e substância. Como demonstrou Mikhail Bakhtin noutro contexto, toda subjetividade é composta por várias vozes, não só linguageiras, mas sociais, afetivas. Ninguém se basta a si mesmo, no limite, ninguém está só, todos somos relações. É a relação que nos define, não a identidade.

Em literatura isso muda tudo. A literatura foi e continua sendo um dos gêneros do discurso mais importantes da modernidade. Ela fundamenta algumas das premissas que a tradição do pensamento ocidental tem encampado desde a alvorada do capitalismo e de sua expansão. Por exemplo, a ideia de um sujeito pleno a si, tanto mais poderoso quanto mais consegue se livrar dos contágios com os muitos que o pressionam. De certo modo, a grande literatura da modernidade é uma literatura da constituição deste sujeito, do poder deste sujeito de se diferenciar do que o cerca. Do ponto de vista da crítica literária, há um implícito juízo de valor que condiciona toda grande obra à invenção deste sujeito autônomo. Essa falácia capitalística, que na ordem econômica equivale à propriedade privada, está na base de boa parte das metodologias de abordagem da literatura ainda hoje. Ele consiste em pôr debaixo do tapete todas as articulações e relações que constitui este sujeito. De Ortega y Gasset a Freud, a multidão sempre foi pensada como aquilo ao qual o sujeito deve evitar.

O conceito de multidão na literatura consiste em recusar toda essa viseira de uma subjetividade substancialista e solipsista. A multidão na literatura pressupõe compreender os movimentos dos muitos como fundamento deste sujeito. Uma literatura de multidão é muito mais uma literatura que pensa o que fazem os personagens secundários do que os protagonistas e os narradores. Antes é a multidão que os define. O protagonismo dos protagonistas não existe sem esses foras, que são os muitos, espaciais, temporais, afetivos, de gênero, raça e classe e mais. Vejamos um dos melhores exemplos, o grande romance A paixão segundo G. H., de Clarice Lispector: G.H. consegue produzir sua poderosa subjetividade autocrítica após Janair, a empregada que só aparece no começo do romance, decidir ir embora. É daí que nasce a quebra de todos os alicerces de G.H.. Neste caso, o mais constituinte em G.H. é o movimento de Janair, não ela em si mesma. É disso que trata, em linhas gerais, o conceito de multidão. Se G.H., ainda pressupõe uma subjetividade autorreferente, embora em profunda crise, obras como Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, e O Jogo da Amarelinha, de Julio Cortázar, com suas proliferações de personagens e de seus encontros e contágios, já são literatura de multidão em ato.

ObjorC — Como essa estética de multidão vem contribuindo para a literatura na atualidade? E como isso se reflete na realidade?

Luciano Justino — De saída é preciso pensar um duplo movimento. Primeiro é a própria literatura que mudou seu estatuto. A literatura hoje, pensando sobretudo em termos de Brasil, já não é mais um campo unificado, se é que um dia o foi. Ela pressupõe novas concepções da forma, novas articulações de linguagens e sistemas semióticos, novos agentes produtores, novos leitores. Ela é hoje por natureza múltipla. Em vista disso, é preciso reiterar que o conceito de literatura de multidão é uma estratégia de leitura, e não só das obras contemporâneas, ele pressupõe uma nova metodologia de abordagem dos textos literários, e não só literários, convenhamos. Você fala em realidade, eu penso numa realidade agora como algo não enquadrável numa única chave unificante, são muitas vozes e vozes de muitos, isso é a literatura contemporânea. As novas realidades dizem respeito a novas vozes que tomam o discurso articuladas a questões de raça, gênero, classe, geração, território etc. Pra lembrar um princípio da midiologia de Régis Debray, todo novo estágio das formas implica na exigência de um novo olhar sobre as antigas.

ObjorC — Como a crítica tem assimilado tais questões? Existe uma tendência ao diálogo com o que não é central nas obras literárias?

Luciano Justino — Sua própria pergunta traz uma premissa, a do centro. A questão é que o centro está na margem, como sempre esteve. Ele é a margem. Ele troca de lugar sempre. A história do cânone literário demonstra isso. É o estatuto do que é central que muda com o conceito de multidão e de literatura de multidão. Eu pessoalmente acredito que essas questões estão sempre sendo discutidas, e não só hoje, é preciso escavá-las, reler críticos e obras procurando neles outras coisas, fazendo novas perguntas. Acho que há uma enorme vitalidade, sob este aspecto, tanto na produção das obras quanto na leitura delas por parte da crítica. O que foi a Poesia Concreta, suas traduções, seus textos críticos, senão esse movimento da poesia, e da literatura em geral, para as margens, uma poética das relações, como gostava de dizer Haroldo de Campos? E um grande livro de crítica como Crítica e verdade, de Roland Barthes, que é de 1966, senão uma leitura não pressuposta, escandalosa, das obras. Sem falar dos vários ensaios que Walter Benjamin dedicou a Charles Baudelaire. O que é O Guesa Errante, de 1877, de Joaquim de Sousândrade senão um livro de multidão? A vitalidade quanto a isso da crítica e dos textos literários é enorme e tem uma longa história.

ObjorC — Como surge a Multidão em sua trajetória?

Luciano Justino — Eu acredito hoje que a multidão, de certo modo, sempre esteve inerente ao meu trabalho. Não sei se tem alguma coisa a ver com Zé Pinheiro (bairro de Campina Grande), pelo fato de eu ter vivido lá a vida inteira, acho que é um locus muito interessante desses vários funcionamentos, dos vários estratos sociais, desse bairro que é quase uma cidade. No meu trabalho sobre Augusto de Campos, de alguma maneira, eu acho que a multidão já estava lá, embora não nomeada. Porque a pesquisa que fiz sobre Augusto, sobre a poesia concreta, sempre se pensou, até pra eu conseguir entender a poesia dele, que não é uma poesia fácil, eu sempre estudei Augusto o tempo todo, e escrevi sobre, estabelecendo diálogos com outros artistas e outros poetas: Augusto e João Cabral, Augusto e Oswaldo, Augusto e Maiakovski, Augusto e Mallarmé… Então, de alguma maneira, a multidão aparece aí nessas formas do diálogo e no modo como a poesia concreta de alguma maneira tentou retirar da poesia a supremacia do eu. Em certo sentido a poesia concreta é uma poesia da anti-tradição da poesia porque é uma poesia dos objetos. Haroldo de Campos vai dizer que é uma poética das relações e não uma poética dos sujeitos. O eu dificilmente aparece num poema concreto. A poesia de Augusto sempre foi uma poesia que convidou a um diálogo, a uma saída das individualidades. Então eu acho que a ideia de multidão estava lá embrionariamente, embora eu ainda não tivesse clareza dela e nem sequer o nome, que eu peguei depois na leitura do livro Cinco Lições sobre o Império, de Antonio Negri, que foi um livro que me impactou pra caramba. Depois eu descobri que era um livro em que ele comenta, resumidamente, as principais teses do grande livro dele, que é Império. Isso feito, eu fui depois pro livro que se chama Multidão, dele e Michael Hardt, e lendo autores conexos, sobretudo italianos, como Paolo Virno, em Gramática da Multidão, outro livro muito importante. E o trabalho de Maurizio Lazzarato, Signos Máquinas e Subjetividades, que eu acho que é ainda um passo à frente, inclusive, da ideia de multidão. Eu acho que a multidão tem muito a dizer a literatura, primeiro porque a literatura de certo modo é o lugar desse eu. A história da tradição literária mede a grandeza dos autores em relação ao modo como eles conseguiram construir essas individualidades. Então, na literatura de multidão é preciso rever, reler os clássicos nessa nova perspectiva, e tirar do limbo alguns livros que são necessariamente de multidão, como Memórias de um Sargento de Milícias. Nesse livro não existe um eu, pelo contrário, os personagens estão o tempo todo na vida, vivendo, se inter-relacionando. Os ratos, de Dyonélio Machado, que é outro livro importante também. São livros que vão ficando um pouco à margem porque não trazem esse eu profundo, que é o eu da tradição literária, sobretudo, da tradição literário moderna, que se confunde com a própria literatura. E não só isso, a tendência de a partir desse núcleo pregnante do eu, a literatura, a crítica literária, os modos de ler a literatura de alguma maneira procuram essas individualidades invisibilizando tudo que está ao redor delas, a produção dos muitos. Parece contraditório, mas acho que a literatura de Augusto de Campos me levou a rever, a reler, por exemplo, Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, que para mim é o grande marco da literatura de multidão. Embora seja um eu poderoso, Riobaldo falando, mas são centenas de personagens que aparecem ali, dialogam com ele, enfim…

ObjorC — Nesse caso, em relação ao Nordeste, como o conceito de multidão pode ser articulado?

Luciano Justino — Eu acho que se tem um lugar em que o conceito de multidão deve ser aplicado com urgência é no Nordeste. E na literatura do Nordeste. A gente pode até dizer que o Nordeste é uma invenção da literatura, em certo sentido. Porque é a literatura do Nordeste que vai criando esse modo de representação, esse modo de nós nos vermos que se tornou tão poderoso que não se vê de outra maneira. As muitas produtividades do Nordeste, por exemplo, as grandes cidade nordestinas, praticamente não existem na literatura nordestina e nem na literatura que tem o Nordeste como locus. Então, nesse movimento centrípeto, o tempo todo o Nordeste é sempre a mesma coisa, o Nordeste nunca sai de ser essa nordestinidade. Então, as muitas potencialidades que nós vivemos no Nordeste ainda estão completamente fora da representação da literatura, e acho até que fora do próprio cinema. É preciso que a gente comece a repensar quem somos nós para além desse modo tradicional de representação do que vem ser o Nordeste. Voltando, o Riobaldo é um caso. O Grande sertão: veredas é uma obra que pode ser pensada do ponto de vista do Nordeste. Mas, quem é Riobaldo, quer dizer, qual é o Sertão de Riobaldo? O Sertão de Riobaldo está em toda parte, é uma máquina de potência em todos os sentidos. Você tem vários tipos de pessoas e de gentes produzindo saberes ali, inclusive, o jagunço que conta é extremamente sábio naquela voz dele. Então, o livro já é um marco de uma abertura do Nordeste para suas outras dimensões. E Angústia, de Graciliano Ramos, que é um romance urbano, mas um romance que sempre quando se fala do Nordeste, e que se fala de Graciliano, que teria sido o maior escritor nordestino que o Nordeste produziu, o Graciliano que vem é o de Vidas Secas. Mas, existe o Graciliano que escreve o seu grande livro que se passa em Maceió, na cidade. Então, o Graciliano urbano não aparece para nomear o Nordeste. Eu acho que a multidão é um conceito importante para fazer explodir o Nordeste. O Nordeste precisa ser explodido para se abrir.

ObjorC — Ainda nesse sentido, seríamos nós os produtores-provocadores de uma construção estereotipada da figura do nordestino — nossa figura — ou seria o outro que nos impõe, produz e reproduz essas percepções distorcidas do que é ser nordestino?

Luciano Justino — Eu acho que é um duplo movimento, que as duas coisas acontecem. Nós construímos muito essa imagem, tem vários estudos sobre isso, quando é que surge isso, esse modo de representação. Mas, por exemplo, um texto fundador é Os Sertões, de Euclides da Cunha. E Euclides é um paulista que vem a serviço do Jornal O Estado de São Paulo fazer um trabalho no Nordeste e ele é um fundamento dessa visão do Nordeste. Hoje, essa verdade sobre o Nordeste se disseminou. Ela está no Brasil inteiro, que vem de lá pra cá, de outras regiões, mas a gente insiste em se construir assim. A gente chega até a simular… durante determinados momentos, sobretudo nas festas de junho, a gente chega a simular e reconstruir esse Nordeste. Mas, veja que coisa interessante. Eu nunca vejo a senzala, quer dizer, sempre que se reconstrói esse Nordeste através de casebres, de espaços cenográficos, por exemplo, no Parque do Povo, é um Nordeste da época da escravidão, mas sem a senzala. Então veja que ele por si só já unifica numa identidade e invisibiliza claramente essas outras relações. Não tem como não concordar com o Walter Benjamim, é um monumento à barbárie do maior que existe. São essas encenações do Nordeste arcaico, porque elas são sempre parciais, e negam a barbárie que dava fundamento num certo sentido a ela, como ao mesmo tempo nos estigmatiza. É como se nós fossemos sempre o mesmo nordestino, do mesmo jeito, vivendo do mesmo jeito, consumindo os mesmos produtos, produzindo a mesma linguagem… como se nós não fôssemos, cada um de nós, muitos. É preciso tirar o discurso sobre o Nordeste do imobilismo. Aqui ninguém é nordestino, exceto quem é, para parafrasear Eduardo Viveiros de Castro. E eu vejo na literatura e no cinema um movimento forte para sair disso, mas que ainda não é reconhecido como produção nordestina. Aparece muito mais como uma marginalidade, quando na verdade isso é muito grosso da própria produção.

ObjorC — No que se refere à mídia e a sua capacidade de construir realidade, como ela influencia nesse processo?

Luciano Justino — A mídia só pode ser pensada no plural. Embora o termo já seja o plural de médium, há sempre uma tendência a pensá-la no singular. Veja, o próprio jornal, que está na alvorada modernidade jornalística, já é em si um espaço interdiscursivo. Do ponto de vista da literatura, devemos pensá-la ela mesma como midial, ela tem uma relação indissociável com a escrita e faz a escrita deambular, sair de si mesma, a mais poderosa, e quiçá a mais importante tecnologia inventada pelo animal humano. É claro que a mídia corporativa, as chamadas mídias de massa, sobretudo, a televisão e o cinema, sempre precisou de uma base industrial cara, por isso, mesmo sempre articulada ao capital, tendeu a criar uniformidades, estereótipos, “logotipos”, mas mesmo assim nunca conseguiu controlar seus próprios foras, ainda mais com a chegada da internet e a mudança política, para mim fundamental, de todo mundo ser potencialmente autor. A suposta uniformidade da mídia deve ser pensada sempre como luta na instância de poder da ideologia, com claríssimas implicações de classe e privilégio, mas mesmo ela precisa ser pensada para além daquilo que ela quer dizer, é preciso ler a mídia numa perspectiva de multidão, ou seja, lê-la à revelia daquilo que ela quis dizer, de sua superfície. Sob esse aspecto, a análise do discurso, como a linguística tem compreendido, é uma ajuda e tanto.

ObjorC — Você está lançando, pela editora Patuá, o livro de poemas ?Pode um preto voar!. Como o conceito de literatura de multidão se insere no seu trabalho de “escrita criativa”, para diferenciar da escrita acadêmica?

Luciano Justino — ?Pode um preto voar! é um livro de poemas que fui construindo concomitantemente aos livros acadêmicos de crítica, que fiz sobre a literatura de multidão… Veja, como a multidão é uma premissa, só posso partir da multidão como princípio heurístico, como uma ética política dos afetos para tratar dos fenômenos. Neste caso, a partir de uma outra relação com a linguagem, a linguagem da poesia, se é que existe uma linguagem da poesia que a diferencie das demais, creio que sim. A poesia pressupõe uma outra ordem de conhecimento, uma outra intervenção, uma intervenção própria, da poesia, da ordem do saber e, lógico, do discurso e da língua. À linguagem da poesia, mais correto é mesmo dizer que a poesia é uma intervenção na ordem da linguagem, e é de tal modo que por princípio só a poesia — que exagero -, é capaz de dar conta da multidão via linguagem. A linguagem é o lugar da ordem, da moral, da “identidade do idêntico”, da lei; toda dispersão, todo nomadismo, uma vez na ordem da linguagem, tem que se estabilizar, paralisar num significado apriorístico, pressuposto, se sedentarizar. Por isso, de certo modo, entendo que há um certo descaminho entre o conceito de multidão e a própria linguagem. A multidão é um excesso que só a poesia, a linguagem da/na poesia pode dar conta. Num texto que gosto muito, Para uma poética, de Julio Cortázar, aliás como tudo que ele fez, ele sugere a poesia como irrupção, salto no ser, salto para fora do eu, um alienar-se no melhor sentido da palavra, alienar-se, deixar de ser o que a ordem se nos impõe e ser outra coisa para além de si mesmo e que é aquilo que se verdadeiramente é. É assim mesmo oximórico. Alienar-se aqui, ao contrário do senso comum, não estar “alheio” às coisas, mas uma irrupção pra cima delas, uma forma de engajamento, mas um engajamento próprio da poesia. Nesse livro, eu tento criar uma ambivalência entre o preto da negritude e o preto da página, daí o título, é preta a página e é preto o preto, e tento partir da ideia do preto como multiplicidade, como algo para além da identidade racial e racista, o preto em seus muitos devires. Lógico, é um livro em muitos aspectos também de poesia política, um livro sobre o Brasil, mas é um livro sobre nomadização, sobre singularização, sobre diferença, pelo menos é essa a premissa, se consegui… para lembrar Fernando Pessoa, “sentir, sinta quem lê”.

ObjorC — Como o jornalismo poderia aproveitar-se do conceito de multidão?

Luciano Justino — Existe um livro muito bacana sobre o tema associado ao jornalismo que é Mídia Multidão, de Ivana Bentes, professora da UFRJ, que faz uma pesquisa sobre a mídia ninja. Eu acho que o jornalismo vive um momento privilegiado. Assim como a literatura, o jornalismo está vivendo um momento de expansão e um movimento centrífugo. Claro, os grandes conglomerados de mídia permanecem, mas já há muito movimento por fora na mídia alternativa e a gente está vivendo hoje no Brasil um momento em que se não fosse a mídia alternativa, muito do que está sendo discutido no Brasil teria sido completamente invibilizado. O próprio jornalismo brasileiro, vejamos o exemplo da Vaza Jato. Acho que faz com que o jornalismo possa se aproveitar fundamentalmente disso. Principalmente, porque a ideia de multidão está muito associada ao conceito de trabalho imaterial, quer dizer, a multidão está muito associada à produção de linguagem. Então, o jornalismo é um lugar privilegiado para este conceito, para se explorar essas várias vertentes, esses vários saberes, essas várias produções que estão disseminadas nas sociedades, mas que não recebem o mesmo estrato de valor. O jornalismo tem uma função importante nesse sentido.

No caso da literatura, como a literatura pode fazer isso, eu acho que a poesia, embora nem eu às vezes acredite nisso, mas enfim, me parece talvez a grande onda para se pensar um Brasil fora dessa chave unidimensional que estão querendo dar aí a ele. Esses fechamentos radicais que a gente pensou que nunca mais poderia viver, gente querendo proibir livro, gente querendo proibir filme, proibir exposições de arte… Então, acho que a poesia, porque é próprio da poesia exatamente fazer sair a relação simples entre a linguagem e a verdade. A poesia brinca o tempo todo com os duplos sentidos, com o nonsense, com o sentido não pressuposto. Ou seja, de certo modo, a poesia é o lugar mais interessante para se experimentar outros mundos do mundo, sobretudo num país em que estão querendo reduzir os vários mundos ao menos um. O que está faltando um pouco ao Brasil é um trabalho maior com a poesia. Agora não a poesia como ingenuidade, mas a poesia como crise, crise da relação linguagem e sentido para produzir novos sentidos, novas relações, novos sujeitos, novas comunidades. E não a poesia como um exercício para adular os sentimentos. Onde tiver sentimento, tem má poesia.

ObjorC — Nesse cenário onde todo indivíduo possui um meio de comunicação e amplia cada vez mais sua capacidade de comunicar, considerando também as mídias alternativas, que futuro poderíamos vislumbrar quando pensamos em classe e privilégio?

Luciano Justino — Veja, a classe e o privilégio de certo modo estão associados à capitais, capital escolar… e eu acho que no processo de democratização da educação que a gente viveu nos últimos anos do Brasil isso já começa a se modificar. No caso da literatura, hoje a gente tem uma produção de literatura vinda das periferias como nunca existiu. A história da literatura brasileira é a história do privilégio, talvez de todas as artes. A arte que mais nasce do privilégio é a literatura, porque ela nasce de um capital que no Brasil é marginal, que é a escrita e a leitura. É gozado isso. O sujeito é brasileiro, mas se não souber ler ele não pode votar. Mas, ao mesmo tempo, o Estado brasileiro não potencializa a educação. Então é uma grande metáfora de um país extremamente inclusivo, que diz que todo mundo tem que ser alfabetizado, mas que ao mesmo tempo exclui e cria mecanismos de exclusão. Então, muito do que está acontecendo na literatura brasileira hoje de bom é exatamente o rompimento com esse privilégio de quem escreve. Está surgindo um novo vocabulário, novas demandas, novas formas de escrita, e novas histórias sendo contadas. Por exemplo, existe uma potência muito grande hoje do romance histórico que está recontando a história do Brasil, do ponto de vista das mulheres, do ponto de vista dos negros. Isso tudo está associado a uma mudança importante na relação capital escolar e literatura e as relações de privilégio. No caso da multidão a ideia de classe é redefinida, ela é rediscutida. Quer dizer, a classe agora tem que estar o tempo todo conectada a gênero, etnia, geração, região… o que define o sujeito não é apenas o trabalho ou a qual estrato social ele pertence economicamente, porque mesmo pertencendo ao mesmo estrato social economicamente, à mesma classe, as pessoas são muito diferentes a partir de outros enlaces. Então, é preciso conectar o tempo todo a classe a esses outros enlaces com outras questões. Às vezes, questões de ordem religiosa que modifica completamente a relação das pessoas dentro de uma mesma classe. O próprio conceito de classe precisa ser mais nuançado e sair da chave fechada que a Sociologia clássica incluiu. O conceito de multidão problematiza tudo isso. Então, o privilégio está também associado aos estratos de valor que se dá às culturas, às produções culturais e aos saberes. O conceito de multidão ajuda a questionar esses privilégios trazendo à tona saberes não dominantes e marginalizados, mas dotados de potência produtiva.

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