O ‘cult’ é para todos

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Equipe Objorc

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19 de dezembro de 2020

magem: Reprodução/Instagram/ Uol Tab / Franz Kafka: HO File/AP / Friedrich Nietzsche: Domínio Público; Montagem: Beatriz Gomes

O que liga Angela Davis à MC Carol? Ou mesmo Freud à Kevin O Chris? Para muitos, baseada em uma visão social elitista — e por que não racista — esses seriam nomes difíceis de interligar. Visão essa que costuma pôr um abismo entre o que é denominado culto e o que nasce e vive dentro das periferias. Uma desarmonia (in)existente entre funk e a literatura.

Literaturas como a de Kafka, Maquiavel ou mesmo Paulo Freire, comumente associadas apenas a um academicismo, viralizaram nas redes sociais após Dayrel Azevedo, jovem de 21 anos, criar o perfil “Funkeiros Cults” no instagram, que alcançou uma marca de 234 mil seguidores. Essa história foi retratada por Giacomo Vicenzo em sua reportagem para a plataforma Uol Tab, publicada em junho de 2020.

Vicenzo começa seu texto já envolvendo o leitor à proposta que Dayrel traz ao ‘Funkeiros Cult’ e evidenciando bem a singularidade do perfil. Primeiro, pela fotografia estampada já no início da matéria: o jovem Thiago Torres no estilo “chavoso” de boné e óculos juliet, lendo Angela Davis. Segundo, pela referência imediata a um dos clássicos livros de Franz Kafka, “A Metamorfose”, que no primeiro parágrafo termina com a exclamação usada pela página: “Caralho, o menor virou um inseto!”. Uma fusão direta entre gírias que nascem da periferia e do funk às ideias de grandes autores e pensadores.

Há no texto a conquista de promover uma forte imersão do leitor na temática da reportagem. Num universo de diversas gírias, em que talvez não seja possível ter conhecimento a todas, Vicenzo oferece certa transparência de forma que o leitor compreenda naturalmente, ou melhor, pegue a visão ao trazer os significados das gírias citadas.

Apesar do funk atualmente ter tido uma popularização a nível nacional, ele em sua natureza nasce na periferia e traz consigo o seu cotidiano, no entanto, desde o seu início até os dias atuais, sofre com tentativas de restrições; com movimentos que tentam criminalizar esse gênero musical e, consequentemente, impõe estereótipos sobre funkeiros: como a de que funk e literatura são como água e óleo, não se misturam. Há muitas vozes na reportagem que evidenciam isso, como a do Dayrel, que cresceu ouvindo comentários carregados de preconceitos em relação ao funk.

“Não entra na cabeça das pessoas que quem ouve um certo estilo de música ou se veste de alguma forma pode ter conhecimento de algo que é escolhido pela elite como cult.”

A reportagem também conta as histórias de Thiago Torres, estudante de Ciências Sociais da USP, conhecido como ‘chavoso da USP’, e de Ísis Luna, estudante de história da UFRJ, que além de tudo levanta um debate sobre gênero através de um meme para a página, ressaltando a sua essência como mulher periférica e travesti.

Todas essas vozes, de Dayrel à Ísis Luna, apesar de terem suas próprias histórias, compartilham um mesmo aspecto em suas vidas: terem suas capacidades subestimadas apenas pelo jeito que escolheram ser, pela música que escolheram ouvir ou mesmo pelo lugar em que vivem. Todos eles em algum momento se depararam com a estranheza nos olhos de outros. Estranheza que se dá por simplesmente lerem e conhecerem o que a elite tantas e tantas vezes julga não ser para eles. Mesmo quando 74% do consumo de livros no Brasil não está ligado à essa elite.

É significativo também destacar a inserção da fala do jurista Silvio Luiz de Almeida, autor do livro “Racismo Estrutural”, que está presente como um dos memes da página. A fala do jurista, em entrevista para o TAB, ressalta a importância da democratização do conhecimento e acesso ao ensino, que essencialmente deve atingir a todos igualitariamente e não somente a uma parcela da sociedade.

Além de Almeida, outro destaque é dado a um personagem também essencial. O leitor é apresentado à Thiago Souza, um doutorando em Música pela USP, que pesquisa funk. A história de Thiago é mais um espaço na reportagem que reflete sobre a estereotipação e demérito de determinados ritmos. É costumeiro que qualquer manifestação não originada nos centros culturais, no berço da elite, tende a ser marginalizada. Foi o que aconteceu com o samba e é o que acontece com o funk.

“Não se espera que uma pessoa com formação musical, um músico que estudou música clássica e que tá no doutorado no departamento de música da USP, defenda a musicalidade do funk”

Em contrapartida a esse abismo posto entre a música clássica e o funk, o leitor aqui ganha de brinde algo único. Thiago realizou uma junção entre a melodia de ‘Rabetão’ ao estilo de Bach, disponibilizada na reportagem para que o leitor possa aproveitar uma união atípica: um clássico de Bach com a música animada do MC Lan.

Como um último ato, o autor da reportagem reforça a discussão sobre a democratização do saber trazendo no material as consequências da popularização desse trabalho criado por Dayrel. A página não criou o menino ou a menina da periferia que lê, longe disso, o “funkeiro cult” sempre existiu. A ideia foi escancarar isso para o Brasil, alardear a imagem “chavosa”, diga-se tão mal vista, sendo associada ao escritor/filósofo/sociólogo de terninho.

O perfil tem feito o que se propõe desde o início, quebrar os estereótipos que, em pleno século 21, ainda cercam o funk e a periferia. E com o humor com que fazem isso, ainda estimulam o gosto por leitura e conhecimento para quem acompanha a página. Ler é um hábito que simbolicamente concede asas, abre portas, não importa se estamos falando de uma leitura didática ou de uma obra literária. O perfil traz memes com livros dos mais diversificados temas, o que estimula a ver o leque de possibilidades de leitura. É impossível gostar de tudo, claro, mas além de ler é preciso estar aberto para sair do previsível, para inquietar-se e transformar-se assim como traz a sentença de Kafka:

“O livro deve ser como um machado que quebra o mar gelado que existe em nós”.

Vicenzo não se limita a relatar, junto aos vários personagens do texto, uma narrativa voltada somente ao que se passa na perfil oficial. Além do espaço no Instagram, houve também a criação de um grupo no Facebook, um outro meio de disseminar debates sobre livros, cinema e estudos que ajudou, por exemplo, a adolescente de 15 anos, Lethícia Felix.

“No grupo eu vejo muita gente que está onde eu desejo estar e saiu do mesmo lugar que eu. Isso é um incentivo…”

Lethícia conta que idealizou a criação de um grupo no whatsapp para auxiliar e estimular os estudos. O grupo contou com pelo menos 50 professores com o interesse e disposição para ajudar a mais de 600 estudantes. Uma dessas é a Camila Almeida que representa, ainda que minimamente, o grupo de professores dispostos a ajudar. E assim a narrativa de Vicenzo se encerra, nos fazendo refletir, sob múltiplas vozes, a respeito da elitização da cultura, do estereótipo e marginalização de um gênero que carrega e espalha sua natureza negra.

Beatriz Romão


A reportagem ‘Funkeiros cults’ faz humor com memes de pensadores e gírias da quebrada está disponível em:

https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2020/06/22/funkeiros-cults-faz-humor-com-memes-de-pensadores-e-girias-da-quebrada.htm

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