A Crítica da razão negra de Achille Mbembe

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Equipe Objorc

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26 de dezembro de 2020

Luciano Justino

Estou convencido de me ter tornado negro ao cruzar a rua Quebra Quilos ouvindo um velho walkman e alguém gritar “sai do meio macaco”.

Era um carro azul. Era 1986.

Passada a infância em Zé Pinheiro, até aquele momento a questão negra não havia aparecido para mim, muito menos uma “consciência negra”.

Ao certo devo ter sido alvo de piadas raciais até aquela manhã de 1986, mas não lembrava porque jamais tinham me atingido da mesma maneira.

Bairro popular, Zé Pinheiro era/é um bairro fundamentalmente mestiço, com um número relevante de famílias negras, um turbilhão de gente vivendo entre a Cachoeira e a Feira Central, a 15 minutos de caminhada do Centro da cidade.

Na época, sediava o Estádio Municipal, onde treinava o Campinense Clube. O bairro respirava futebol, pelo menos para um guri de 14 anos.

Após os treinos, era comum os jogadores do Campinense, em grupo e em sua imensa maioria negros, subirem a rua Maximiniano Machado a pé. Era um evento.

De certo modo, “macaco”, nome de uma diferença radical, e naquela rua que dá início ao Centro da cidade, implicava um outro olhar também para Zé Pinheiro, onde esse insulto, no tom que lhe foi peculiar, não era pertinente.

Daí em diante, Zé Pinheiro ganhou novo sentido, passou a significar também acolhimento e mutualidade; em oposição, o Centro se abriu como nova territorialidade, a do insulto.

Óbvio que lembrar e recontar este episódio sempre ganha um componente novo, o da distância acrescida à busca de uma efetiva ética-política negra, num país cujas estatísticas de assassinato de vidas negras são monstruosas.

No momento em que escrevo, o governo Bolsonaro exclui a violência policial dos dados sobre violação dos direitos humanos, violência policial que, sabemos, é na maior parte dirigida à juventude negra.

É nesse contexto que o lançamento pela N-1 Edições de Crítica da razão negra do filósofo camaronês Achille Mbembe continua a ser um marco editorial. Soma-se com louvor a já vasta e importante bibliografia sobre a questão negra e racial no Brasil, dotando-a de alguns elementos novos a partir de uma perspectiva internacionalista.

No plano pessoal, é um livro que me ajuda a pensar essa distância, que é sempre esse agora, pois todo negro já foi alvo do incômodo de alguém só por sua simples aproximação. Apressar o passo, emitir um sonoro boa noite e seguir, entra na conta de um pequeno protesto.

1. Modernidade, colonialidade, racismo

O enlace entre modernidade, colonialidade e racismo é, dentre vários, um ponto instigante do livro, no qual aparecem como as 3 faces de uma mesma moeda, sendo ingênuo pensá-las separadamente.

O negro e a raça são o subsolo inconfessável da modernidade. Seus primórdios, o Portugal de 1444, quando os primeiros negros vítimas de pilhagens e transformados em objetos, chegam ao velho continente.

Nas palavras do autor, “o negro é de fato o elemento central que, ao mesmo tempo, que permite criar, através da plantação, uma das mais eficazes formas de acumulação de riqueza, na época, acelera a implantação do capitalismo mercantil, do trabalho mecânico e do controle do trabalho subordinado”.

Mais, “a invenção do negro abrirá igualmente caminho a inovações fundamentais nos domínios dos transportes, da produção, da comercialização e dos seguros”.

A raça é a ficção útil que dá lastro à importação de mão de obra escrava e à plantação, o primeiro campo de concentração, o locus de uma violência de tipo molecular para conter a multiplicidade e a própria resistência.

Ao tempo em que alarga seu horizonte espacial e econômico, o imaginário europeu se enclausura na invenção da auto-imagem de uma identidade sem relação, substancialista e solipsista, fundamento do etnocentrismo colonial, racializando toda persona não europeia.

A invenção do negro é seu fim imediato e seu modelo heurístico.

A clausura etnocêntrica acarreta um duplo controle do imaginário, instituir os que estão dentro e fabular os fora, os estrangeiros, os ininquadráveis.

Seu correlato, o racismo, pressupõe uma organização da diversidade humana fundamentalmente moderna, não primitiva, como é comum se ouvir por aí.

O racismo é o “produto de uma máquina social e técnica indissociável do capitalismo, da sua emergência e globalização”, cujo resultado é o negro como uma alteridade não assimilável, porque é a transgressão mesma de toda identidade sem relação, o monstro e o escândalo.

“O substantivo negro é depois o nome que se dá ao produto resultante do processo pelo qual as pessoas de origem africana são transformadas em mineral vivo de onde se extrai metal. Esta é a sua dupla dimensão meta-mórfica e econômica. Se, sob a escravatura, África é o lugar privilegiado de extração deste mineral, a plantação no Novo Mundo, pelo contrário, é o lugar da sua fundição, e a Europa, o lugar da sua conversão em moeda”.

A ideia de uma modernidade tão plena a si a passos largos para o futuro de uma humanidade redimida pelo dinheiro e pela tecnologia, em uma palavra, pela civilização, expõe-se como embuste.

A colônia e o racismo, essas formas de excluir estando junto, não se situam num tempo a espera de ser redimido pelo futuro do colonizador.

Não estão fora da modernidade, são seus fundamentos.

2. Raça e razão negra

Assim como o colonizado é uma invenção do colono, para Mbembe, o negro não existe enquanto tal, é produzido pelo imaginário e pelo discurso racial.

A raça é uma efabulação, uma “ficção útil”, “uma figura autônoma do real, cuja força e densidade podem explicar-se pelo seu caráter extremamente móvel, inconstante e caprichoso”.

A razão negra é essa “atividade primitiva de efabulação”, cujo objeto são as pessoas de origens africanas, em que a própria “origem africana” é ela mesma uma outra ficção, na medida em o que chamamos África é “não um nome comum, e muito menos um nome próprio, mas o indício de uma ausência de obra”. Um referente tão generalizante que só pode resultar em estereótipos de estereótipos.

A razão negra designa um poder-saber associado a certas imagens, um modelo de exploração e o que o autor chama de “complexo psiconírico”, que une construtos apaziguantes de viés narcísico a fantasias de toda ordem, inclusive sexuais.

Uma efabulação, para lembrar Franz Fanon, que é também desejo e alucinação.

Trata-se de “uma moeda icônica”, que tem como função “converter o que se vê (ou aquilo que se prefere não ver) em gêneros ou em símbolos integrados numa economia geral de signos e de imagens que trocamos, que circulam, às quais atribuímos valor, e que autorizam uma série de juízos e de atitudes práticas”.

A raça é o que apazigua um ressentimento amargo, odiando. A mente racista odeia o que não pode enquadrar e controlar. É nesse sentido que o negro é não figurável, o outro do outro.

O fim último de tal efabulação, dessa “ficção de cariz biológico”, dessa “loucura codificada”, é tornar o negro estranho a si mesmo, aquele que se olha quando nada se vê, o que resulta na produção de objetos esquizofrênicos e de simulacros de um eu sempre em falta.

Uma das funções dessa efabulação perversa, a raça e o racismo, é produzir esquecimento, apagar não só a riqueza que o negro produz na colônia e no Estado-nação, mas também sua memória, sua língua, sua religião, seus laços de parentesco, em uma palavra, sua longa história.

A resistência será desde sempre uma resistência pelo direito à memória e à invenção de um outro futuro fora da chave inexorável da colonização e posteriormente do neoliberalismo.

No momento decisivo de constituição do Estado-nação, o enquadramento ideológico do diverso em um corpo único, etnocêntrico e monolinguístico, fruto de pilhagem e exílio, a consciência negra será, paradoxalmente, diaspórica e desnacional, porque nunca e em lugar algum dele o negro fez parte como cidadão de pleno direito.

Se a raça não existe, se somos todos humanos, como costuma dizer um discurso bem pensante, o racismo é uma realidade cotidiana todas as vezes que se atravessa uma rua.

E devemos, sempre, recorrer aos muitos que ao longo desta grande travessia não deixaram de ressignificar o insulto, devolvendo-o como potência constituinte.

Crítica da razão negra é mais uma pedra na constituição deste caminho.

Campina Grande, 26 de dezembro de 2020.


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