magem: Reprodução/Instagram/ Uol Tab / Franz Kafka: HO File/AP / Friedrich Nietzsche: Domínio Público; Montagem: Beatriz Gomes
O que liga Angela Davis à MC Carol? Ou mesmo Freud à Kevin O Chris? Para muitos, baseada em uma visão social elitista — e por que não racista — esses seriam nomes difíceis de interligar. Visão essa que costuma pôr um abismo entre o que é denominado culto e o que nasce e vive dentro das periferias. Uma desarmonia (in)existente entre funk e a literatura.
Literaturas como a de Kafka, Maquiavel ou mesmo Paulo Freire, comumente associadas apenas a um academicismo, viralizaram nas redes sociais após Dayrel Azevedo, jovem de 21 anos, criar o perfil “Funkeiros Cults” no instagram, que alcançou uma marca de 234 mil seguidores. Essa história foi retratada por Giacomo Vicenzo em sua reportagem para a plataforma Uol Tab, publicada em junho de 2020.
Vicenzo começa seu texto já envolvendo o leitor à proposta que Dayrel traz ao ‘Funkeiros Cult’ e evidenciando bem a singularidade do perfil. Primeiro, pela fotografia estampada já no início da matéria: o jovem Thiago Torres no estilo “chavoso” de boné e óculos juliet, lendo Angela Davis. Segundo, pela referência imediata a um dos clássicos livros de Franz Kafka, “A Metamorfose”, que no primeiro parágrafo termina com a exclamação usada pela página: “Caralho, o menor virou um inseto!”. Uma fusão direta entre gírias que nascem da periferia e do funk às ideias de grandes autores e pensadores.
Há no texto a conquista de promover uma forte imersão do leitor na temática da reportagem. Num universo de diversas gírias, em que talvez não seja possível ter conhecimento a todas, Vicenzo oferece certa transparência de forma que o leitor compreenda naturalmente, ou melhor, pegue a visão ao trazer os significados das gírias citadas.
Apesar do funk atualmente ter tido uma popularização a nível nacional, ele em sua natureza nasce na periferia e traz consigo o seu cotidiano, no entanto, desde o seu início até os dias atuais, sofre com tentativas de restrições; com movimentos que tentam criminalizar esse gênero musical e, consequentemente, impõe estereótipos sobre funkeiros: como a de que funk e literatura são como água e óleo, não se misturam. Há muitas vozes na reportagem que evidenciam isso, como a do Dayrel, que cresceu ouvindo comentários carregados de preconceitos em relação ao funk.
A reportagem também conta as histórias de Thiago Torres, estudante de Ciências Sociais da USP, conhecido como ‘chavoso da USP’, e de Ísis Luna, estudante de história da UFRJ, que além de tudo levanta um debate sobre gênero através de um meme para a página, ressaltando a sua essência como mulher periférica e travesti.
Todas essas vozes, de Dayrel à Ísis Luna, apesar de terem suas próprias histórias, compartilham um mesmo aspecto em suas vidas: terem suas capacidades subestimadas apenas pelo jeito que escolheram ser, pela música que escolheram ouvir ou mesmo pelo lugar em que vivem. Todos eles em algum momento se depararam com a estranheza nos olhos de outros. Estranheza que se dá por simplesmente lerem e conhecerem o que a elite tantas e tantas vezes julga não ser para eles. Mesmo quando 74% do consumo de livros no Brasil não está ligado à essa elite.
É significativo também destacar a inserção da fala do jurista Silvio Luiz de Almeida, autor do livro “Racismo Estrutural”, que está presente como um dos memes da página. A fala do jurista, em entrevista para o TAB, ressalta a importância da democratização do conhecimento e acesso ao ensino, que essencialmente deve atingir a todos igualitariamente e não somente a uma parcela da sociedade.
Além de Almeida, outro destaque é dado a um personagem também essencial. O leitor é apresentado à Thiago Souza, um doutorando em Música pela USP, que pesquisa funk. A história de Thiago é mais um espaço na reportagem que reflete sobre a estereotipação e demérito de determinados ritmos. É costumeiro que qualquer manifestação não originada nos centros culturais, no berço da elite, tende a ser marginalizada. Foi o que aconteceu com o samba e é o que acontece com o funk.
Em contrapartida a esse abismo posto entre a música clássica e o funk, o leitor aqui ganha de brinde algo único. Thiago realizou uma junção entre a melodia de ‘Rabetão’ ao estilo de Bach, disponibilizada na reportagem para que o leitor possa aproveitar uma união atípica: um clássico de Bach com a música animada do MC Lan.
Como um último ato, o autor da reportagem reforça a discussão sobre a democratização do saber trazendo no material as consequências da popularização desse trabalho criado por Dayrel. A página não criou o menino ou a menina da periferia que lê, longe disso, o “funkeiro cult” sempre existiu. A ideia foi escancarar isso para o Brasil, alardear a imagem “chavosa”, diga-se tão mal vista, sendo associada ao escritor/filósofo/sociólogo de terninho.
O perfil tem feito o que se propõe desde o início, quebrar os estereótipos que, em pleno século 21, ainda cercam o funk e a periferia. E com o humor com que fazem isso, ainda estimulam o gosto por leitura e conhecimento para quem acompanha a página. Ler é um hábito que simbolicamente concede asas, abre portas, não importa se estamos falando de uma leitura didática ou de uma obra literária. O perfil traz memes com livros dos mais diversificados temas, o que estimula a ver o leque de possibilidades de leitura. É impossível gostar de tudo, claro, mas além de ler é preciso estar aberto para sair do previsível, para inquietar-se e transformar-se assim como traz a sentença de Kafka:
“O livro deve ser como um machado que quebra o mar gelado que existe em nós”.
Vicenzo não se limita a relatar, junto aos vários personagens do texto, uma narrativa voltada somente ao que se passa na perfil oficial. Além do espaço no Instagram, houve também a criação de um grupo no Facebook, um outro meio de disseminar debates sobre livros, cinema e estudos que ajudou, por exemplo, a adolescente de 15 anos, Lethícia Felix.
Lethícia conta que idealizou a criação de um grupo no whatsapp para auxiliar e estimular os estudos. O grupo contou com pelo menos 50 professores com o interesse e disposição para ajudar a mais de 600 estudantes. Uma dessas é a Camila Almeida que representa, ainda que minimamente, o grupo de professores dispostos a ajudar. E assim a narrativa de Vicenzo se encerra, nos fazendo refletir, sob múltiplas vozes, a respeito da elitização da cultura, do estereótipo e marginalização de um gênero que carrega e espalha sua natureza negra.
Beatriz Romão
A reportagem ‘Funkeiros cults’ faz humor com memes de pensadores e gírias da quebrada está disponível em:
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